Keity Silva de Oliveira (acadêmica do 5º semestre de RI da UNAMA)

A produção audiovisual tem o papel de documentar e contar histórias de diferentes perspectivas que auxiliam na construção do saber histórico-social-cultural de um determinado contexto. Na Amazônia, além de denunciar todos os males que assolam a região, o audiovisual é utilizado com objetivo de mostrar a realidade e vivência dos povos, colocando-os como protagonistas de suas próprias histórias. Nesse sentido, a arte se transforma em um instrumento de resistência, que contribui para o resgate de culturas locais que sofrem pelas tentativas de apagamento por um sistema ainda predominantemente colonial e racista.

Desde o início da humanidade, a arte se tornou uma importante ferramenta para a contagem de histórias, memórias e valores e ao longo do tempo, foi representada em diferentes tipos de formas, expressões, movimentos, sons, imagens e linguagens que ajudaram a imaginar e entender o mundo. Carter e Dodds (2014) argumentam que para aqueles que se debruçam sobre os estudos na ótica das Relações Internacionais, mídias populares, como filmes, plataformas midiáticas e televisão, como as redes sociais, são instrumentos que auxiliam na formação das políticas internacionais.

Dada a difusão dos meios de comunicação e a globalização, essa influência acabou sendo intensificada pelo incentivo às produções cinematográficas. A sétima arte, o cinema, trouxe consigo diversas implicações diretas no trabalho de estudiosos e é um dos recursos utilizados nas RI como forma de reflexão e de caráter teórico.

O cinema surgiu de forma revolucionária e um dos motivos para isso é a função específica da imagem no mundo cinematográfico, que possui caráter histórico e apresenta-se como algo fluído, em movimento, que possibilita a contagem de histórias de forma dinâmica e energética para seus telespectadores (AMARAL; BETTIN; FERREIRA, 2023). Dessa forma, segundo AGAMBEN (2014), “cada momento, cada imagem está carregada de história”, potencializando assim, o uso do audiovisual para mostrar diferentes perspectivas.

A história da Amazônia, desde a chegada dos primeiros europeus à região até os dias atuais, tem sido de perdas e danos e nela, “a Amazônia tem sido, e isso paradoxalmente, vítima daquilo que ela tem de mais especial – sua magia, sua exuberância e sua riqueza” (LOUREIRO, 2002, p. 107). Com a colonização, a região passou a ser “um lugar com um bom estoque de índios” para serem escravizados e explorada de diferentes formas para o enriquecimento da Metrópole com as drogas do sertão, exportando borrachas, minérios, água e madeira (LOUREIRO, 2002).

A violência contra a floresta e seus povos não se constituiu apenas como algo material, mas também simbólica como elemento da estereotipagem. Através da criação de formas estereotipadas sobre a região por grupos, ditos civilizados, a história e identidade dos povos amazônidas foi ignorada e isso se reproduziu pelos diversos meios de comunicação, especialmente no audiovisual.

Sobre isso, SORANZ (2007), discorre que na visão sobre a região, existem discursos entre o arcaico e exótico, da natureza e dos povos considerados “selvagens e bárbaros” que existem ali. Esses discursos foram moldados a partir da perspectiva do colonizador europeu e até hoje, continuam no imaginário de outros países, que apresentam isso nas diversas formas artísticas de representação, ignorando-se completamente, a identidade, cultura e saberes dos próprios povos que estão sendo representados (SILVA, 2020).

Nessa perspectiva, a produção audiovisual feita pelos próprios amazônidas está cada vez mais em crescimento como forma de propagação da cultura e manutenção da história dos povos, sem a necessidade de pessoas de fora, que desconhecem a região, contarem a história dessas pessoas.

A produção autoral indígena, por exemplo, se fortaleceu e ganhou força a partir das oficinas do Vídeo nas Aldeias, projeto criado pelo antropólogo Vicent Carelli, em 1986 (GATTI, 2022) O projeto possuía como objetivo, o fortalecimento de patrimônios de território e cultura indígena, promovendo uma produção compartilhada com os povos.

O Parque Indígena do Xingu, a primeira grande terra indígena demarcada no Brasil, é um dos principais polos e referência quanto à produção histórica, acadêmica e audiovisual sobre povos indígenas. Antes realizado por pessoas brancas, o conteúdo audiovisual produzido na região passou a ser protagonizado unicamente por indígenas a partir dos anos 1990, principalmente devido aos avanços tecnológicos e iniciativas de formação técnica (GATTI, 2022).

O avanço do acesso à internet tem possibilitado praticidade na aprendizagem às formações para a produção do audiovisual, o que proporciona uma base para produções de cinema local. O audiovisual passou a ser considerado como uma importante ferramenta para manter viva a memória dos povos que passam pela Amazônia, já que restam poucos detentores das tradições orais.

Através da exposição de vídeos, curtas-metragens e documentários, os povos amazônidas estão trazendo maior visibilidade para suas pautas, no que tangem noções histórico-sociais, discussões sobre a preservação florestal, noções de cultura, entre outros. Esse foi um dos motivos que levou a produtora Jazz Mota a criar o Primeiro Festival Internacional de Cinema Indígena da Amazônia. O circuito, no formato presencial, começou a ser feito em 2022 e segue sendo um grande evento de difusão sociocultural sobre a região e as comunidades tradicionais, além de ser um espaço voltado para ensinar potenciais artistas sobre produção cultural e cinematográfica (CORRÊA, 2022).

Portanto, o audiovisual se tornou uma importante ferramenta utilizada pelos povos da Amazônia, especialmente os indígenas, para expor a cultura de seus povos, mas também as próprias narrativas sobre suas lutas e as ameaças que sofrem em seus territórios. Para o curador do povo Kuikuro, Takumã Kuikuro, isso “mostra que os povos indígenas existem e estão lutando pelos seus direitos […] e que agora somos nós que estamos documentando isso” (GATTI, 2022). Ao utilizarem meios comunicativos para a disseminação de conteúdos, o protagonismo amazônida cresce em diferentes espaços para garantir a defesa de seus direitos e a valorização de suas culturas e tradições.

Diante da temática exposta, selecionamos uma lista de filmes e curtas-metragens produzidos na Amazônia sobre a região, seus povos e suas várias perspectivas de vidas. Também destacamos produções feitas 100% por indígenas como forma de divulgar a arte e suas representações socioculturais que para as comunidades tradicionais, servem como um instrumento para dar visibilidade as suas lutas e vivências na Amazônia.

A Última Floresta (2021) – dirigido por Luiz Bolognesi e conta com o apoio do xamã Davi Kopenawa Yanomami. O longa retrata a vida e os costumes do grupo Yanomami e mostra como a presença ilegal da exploração de ouro no território está colocando em risco a população indígena e a floresta. Disponível para ser assistido no streaming da Netflix.

A Febre (2019) – dirigido por Maya Da-Rin, conta a história de Justino, um indígena Desana de 45 anos que trabalha como vigilante no porto de cargas de Manaus. Desde a morte de sua esposa, sua principal companhia é a sua filha mais nova, com quem vive uma casa modesta na periferia. Enquanto Vanessa se prepara para estudar medicina em Brasília, Justino é tomado por uma misteriosa febre que o levará de volta a sua aldeia, de onde partiu vinte anos atrás. É falado em português e nas línguas indígenas tukano e tikuna. Disponível para ser assistido no streaming da Netflix.

      Ex-Pajé (2018) – dirigido por Luiz Bolognesi, conta a história de Perpera Suruí, um ex-pajé que obrigado pela colonização e a imposição de suas crenças o fez renunciar seu dom de cura. Um espelho da realidade, o etnocidio, as imposições e a tentativa de roubar de um povo, sua identidade. Disponível para ser assistido no streaming da Netflix.

      Noites Alienígenas (2023) – dirigido pelo Sérgio de Carvalho, o longa acreano acompanha a história de três amigos de infância que cresceram na periferia de Rio Branco, capital do Acre. Em um contexto trágico, o filme apresenta a periferia da Amazônia, as fronteiras entre cidade e floresta, abordando os impactos violentos da chegada do crime organizado do sudeste do país. Foi o grande vencedor do 50º Festival de Cinema de Gramado e está em cartaz nos cinemas brasileiros.

      Ga vī: a voz do barro (2022) – produzido por COMIN-FLD, Coletivo Nẽn Ga e Tela Indígena, é uma animação curta-metragem criada através das memórias narradas por Gilda Wankyly Kuita e Iracema Gãh Té Nascimento, lideranças indígenas no sul do Brasil. O filme conta histórias Kaingang sobre a tradição da cerâmica, o barro, a ancestralidade e as cosmovisões a partir das vozes anciãs. Disponível para ser assistido no Youtube.

      Segredos de Putumayo (2022) – dirigido por Aurélio Michiles, o documentário amazonense é baseado no diário de Roger Casement, cônsul britânico no Rio de Janeiro que em 1910, empreendeu uma investigação sobre as denúncias de crimes contra comunidades indígenas cometidos pela empresa britânica Peruvian Amazon Company. O longa traça uma angustiante imagem da descoberta por Casement de um sistema industrial-extrativo respaldado por assassinatos e trabalho escravo na Amazônia. Disponível para aluguel nas plataformas Claro TV, Vivo Play, Google Play e iTunes.

      O Território (2022) – dirigido por Alex Pritz, o longa vencedor de mais de dez prêmios internacionais, aborda o povo indígena Uru-eu-wau-wau e seu enfrentamento a incursões ilegais de extração de madeira e mineração, e mais recentemente, invasões de grilagem de terras, estimuladas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. O documentário mostra jovens líderes indígenas e ativistas ambientais arriscando suas vidas para defender a floresta, montando sua própria equipe de mídia independente, usando a tecnologia para expor a verdade e revidar. Disponível para ser assistido no streaming do Disney+.

      Topawa (2019) – produzido por cineastas da aldeia Parakanã, o curta-metragem do estado do Pará mostra depoimentos de mulheres da Terra Indígena Apyterewa do povo Panakanã sobre os primeiros contatos com os homens brancos, enquanto confeccionam redes e cestas a partir do tucum. Disponível para ser assistido no Youtube.

      O vazio que atravessa (2022) – dirigido por Fernando Moreira, o curta-metragem é dedicado às vítimas da tragédia de Brumadinho, ocorrida em 2019, quando 272 pessoas foram soterradas pelos rejeitos de minério da companhia Vale. Disponível para ser assistido no site Planet.Doc.

      Nossos espíritos seguem chegando – Nhe’ẽ kuery jogueru teri (2021) – dirigido por Kuaray Poty, indígena Mbya Guarani, traz um breve relato dos primeiros cuidados de uma mãe indígena com sua filha ainda no ventre durante a pandemia de COVID-19. O longa acompanha o dia a dia da indígena Pará Yxapy e suas preocupações em relação ao porto e à pandemia de COVID-19. Disponível para ser assistido no Youtube.

      REFERÊNCIAS

      AGAMBEN, Giorgio. O cinema de Guy Debord. Território de filosofia. Aurora Baêta. 2014. Acesso em: 07 de abril de 2023.

      AMARAL, Gabriella Keren Silva; BETTIN, João Pedro Carvalho; FERREIRA, Letícia Buzá. “A Chegada” Pós-estrutualista: Cinema e Teoria de Relações Internacionais. Revista Internacional em Língua Portuguesa, n. 44, p. 29-41, 2023. Disponível em: < https://rilp-aulp.org/index.php/rilp/article/view/rilp2023_44pp.29-41 > Acesso em: 07 de abril de 2023.

      CARTER, S; DODDS, K. International Politics and Films: space, vision, power. Wallflower Press Book, 2014. Acesso em: 07 de abril de 2023.

      CORRÊA, Gabriel. Começa o 1º Festival Internacional de Cinema Indígena da Amazônia. Agência Brasil. Publicado em: 17 de outubro de 2022. Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/cultura/audio/2022-10/comeca-o-1o-festival-internacional-de-cinema-indigena-da-amazonia > Acesso em: 07 de abril de 2023.

      GATTI, Beatriz. O protagonismo indígena na produção audiovisual no Xingu. NEXO. Publicado em: 11 de novembro de 2022. Disponível em: < https://www.nexojornal.com.br/expresso/2022/11/11/O-protagonismo-ind%C3%ADgena-na-produ%C3%A7%C3%A3o-audiovisual-no-Xingu > Acesso em: 07 de abril de 2023.

      LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re)construir. Estudos Avançados, 16 (45), 107-121. São Paulo, 2002. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9872 > Acesso em: 07 de abril de 2023.

      SORANZ, Gustavo. Imagens da Amazônia. BOCC. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, v-01, p. 1-10. 2007. Acesso em: 07 de abril de 2023.

      SILVA, Matheus Macedo Fernandes da. A representação da Amazônia no cinema: a construção de seu imaginário. Anuário Unesco;/Metodista de Comunicação Regional, v. 24, n. 24, p. 253-267. 2020. Disponível em: < https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/AUM/article/view/1036221> Acesso em: 07 de abril de 2023.