
Rafaela Vale – Acadêmica do 5º semestre de Relações Internacionais da UNAMA.
Ficha técnica
Ano: 2020
Autor(a): Tracy Deonn
Gênero: Fantasia.
O universo mágico iniciado por Tracy Deonn na primeira edição da saga Lendários, lançada em 2020, apresenta mais do que uma ficção de fantasia envolvendo monstros e humanos portadores de habilidades sobrenaturais, a obra também expõe a herança de um período doloroso da história dos Estados Unidos da América.
Bree Matthews e Alice Chen, uma dupla de amigas adolescentes que, ao conseguirem adentrar o projeto de inserção de alunos do colegial no ambiente universitário oferecido pela Universidade da Carolina do Norte, mudam-se para a região sul dos Estados Unidos, região marcada por um passado intensamente escravocrata e que apresenta uma discriminação racial ainda forte na sociedade.
A experiência com o racismo — velado por parte de colegas e autoridades da universidade — é recorrentemente descrito nos pensamentos da protagonista Bree Matthews, uma garota afro-americana, enquanto o desconforto é perceptível nas reações de Alice, de origem taiwanesa.
Bree carrega outra dor durante o período de adaptação ao ambiente, o processo de luto pela perda súbita de sua mãe, que a faz absorver questões externas e não demonstrar reações, devido ao estado traumático em que seu psicológico ainda se encontra. O escudo criado pela adolescente acaba sendo quebrado quando esta passa a enxergar a aura sobrenatural presente naquele local.
O acaso apresenta a jovem aos Lendários, organização secreta centenária, cujos membros, possuidores de propriedades mágicas para enfrentar criaturas demoníacas, descendem dos cavaleiros da Távola Redonda, personagens da lenda do rei. Bree enxerga na magia a oportunidade de desvendar a verdade por trás da morte de sua mãe e de experiências confusas que já a cercavam desde este fatídico dia.
A questão racial nos Estados Unidos, amplamente abordada no livro, pode ser observada sob a luz dos estudos decoloniais das Relações Internacionais, presentes no campo das teorias pós-positivistas.
Em Quintero, Figueira e Elizalde (2019) é abordado o contexto da segregação racial iniciada por meio da exploração do trabalho, este realizado por uma população racializada, explorados por uma minoria branca. Embora o autor utilize o contexto da América Latina para explicar a estratificação sociorracial, é possível relacionar com o contexto estadunidense quanto a utilização de mão de obra escrava para a construção de locais destinados ao convívio exclusivo para pessoas brancas.
As raízes desse histórico de estratificação são bastante observadas por Bree em Lendários, que constantemente reflete sobre sua inserção em locais onde há questão de poucos séculos ela não poderia frequentar, além de observar em determinados pontos monumentos e bandeiras dos confederados, grupo presente naquela região e que carregam um significado histórico de ódio racial.
Críticas também são observadas pelo modo de funcionamento da ordem secreta dos lendários, com o poder concentrado por séculos em um grupo privilegiado, famílias abastadas herdeiras de títulos de nobreza e fortuna advinda do histórico de exploração da região, além de patrocinadoras das instituições presentes na cidade, sendo comparadas pela protagonista com algo próximo da realeza.
E assim que ao adentrar aquele universo mágico, Bree Matthews reconhece a própria magia, além de outros tipos de artes possíveis de serem dominadas, todas ligadas a questões de ancestralidade.
A obra de Tracy Deonn consegue navegar entre a ficção e a realidade, abordando uma problemática atual nos Estados Unidos da América, e em outras nações, quanto ao histórico da exploração de minorias, ao longo de séculos e a luta por direitos, afirmação de identidade e sensação de pertencimento após a integração ainda recente quando comparada ao longo período de segregação racial.
REFERÊNCIAS
QUINTERO, Pablo; FIGUEIRA, Patrícia; ELIZALDE, Paz Concha. Uma breve história dos estudos decoloniais. São Paulo: MASP Afterall, 2019.