Por Matheus Castanho Virgulino, internacionalista

O último dia 6 de junho de 2024 foi um dia emblemático, tanto de forma discreta como evidente. Enquanto veteranos de cabelos brancos, líderes mundiais, militares e civis de todas as nações do Atlântico Norte se dirigiam para as praias da Normandia, devem ter passado por todas as suas mentes as mudanças notáveis ​​que ocorreram desde que essas mesmas praias foram um teatro de guerra há 80 anos.

O Dia-D foi um acontecimento notável, não apenas no contexto mais amplo das Segundas Guerras Mundiais e dos conflitos do século XX, mas também por ser um arauto de uma nova configuração da Política Mundial. De certa forma, foi o arauto do início da hegemonia ocidental na implementação da nova ordem mundial. O seu impacto, tanto para aqueles que o viveram como para aqueles que o honraram posteriormente, não pode ser subestimado.

A Operação Overlord, da qual fez parte o Dia-D, foi a maior operação militar de armas combinadas (aérea, marítima, terrestre) da história mundial. Nela passaram mais de 300 mil soldados e 7 mil navios, que avançaram contra as linhas alemãs e começaram a liberação da Europa Ocidental (POAST, 2024). Foi o culminar da Guerra do Atlântico, o conflito prolongado entre a Grã-Bretanha e, mais tarde, os EUA, contra o poder da Kriegsmarine e da Regia Marina da Alemanha e da Itália no Atlântico-Mediterrâneo (KEEGAN, 1989). Foi esse teatro de guerra, junto com o avanço soviético no leste, que decidiriam o futuro da ordem mundial.

Em 1940, após a derrota da França e da maior parte da Europa continental pelo avanço da Blitzkrieg alemã, a Grã-Bretanha e os seus domínios permaneceram basicamente sozinhos contra os sonhos de hegemonia de Hitler, naquele que Churchill mais tarde chamou de “o melhor momento da nação”. Em 1941, a maré da guerra mudaria, e estariam criadas as condições para a mais poderosa coligação militar da história do mundo. 

Com a Operação Barbarosa em Junho e Pearl Harbor em Dezembro, além da Grã-Bretanha que ainda era o maior império do mundo, uniam-se agora os Estados Unidos, com a maior economia mundial, e a União Soviética, a potência de maior extensão territorial e vasta população (BADSEY, 1990). Agora as Nações Aliadas tinham uma força comparável apenas à Grande Aliança que derrubou Napoleão em 1815. Nos anos que seguiriam até 1945, quase todas as nações do mundo, de leste a oeste e de norte a sul, juntaram-se a esse concerto, e estariam unidas contra a tirania do fascismo.

Em 1944 a situação mudou significativamente. Os soviéticos estavam a martelar o domínio nazista sobre a expansão da Europa Oriental, com batalhas de proporções apocalípticas, tanto entre homens como com armas, por todo o que Halford Mackinder chamou de heartland do mundo (DA COSTA, 1991). As nações atlânticas dos EUA e da Grã-Bretanha, bem como os nossos heróis da Força Expedicionária Brasileira, marchavam pelos antigos campos da Itália, enquanto os italianos se levantavam contra Mussolini e as nações da Grécia e dos Balcãs expulsavam os seus ocupantes.

A última frente que precisava ser aberta estava na Europa Ocidental, especialmente na perdida potência aliada da França. Por toda a costa da França e dos Países Baixos, os nazistas ergueram o atlantikwall, uma grande série de fortificações criadas para evitar incursões aliadas e para preparar uma eventual invasão das Ilhas Britânicas (ZAGOLA, 2007). O Comando Mestre Aliado, sob a figura do General Eisenhower, e o Comando Terrestre com o General Montgomery precisavam de um plano para romper as defesas e entrar na França propriamente dita, e este deveria vir na forma de um ataque coordenado na seção mais viável e facilmente violada as fortificações costeiras. Como Churchill disse em suas memórias “o inimigo nos esperava, mas sabia quando, onde ou como?” (CHURCHILL, 1951, p.518, tradução nossa)

O resultado foi uma grande operação secreta, usando informações falsas e contra-espionagem, para fazer os alemães acreditarem que o ataque passaria pela região do Pas-de-Calais, que ficava mais perto do estreito de Dover, na Grã-Bretanha controlada pelos aliados, em vez da Normandia visada. Porém, deve-se frisar que mesmo a Normandia era fortemente protegida, e qualquer operação anfíbia significaria um enorme custo de vidas. General Eisenhower, em seu pronunciamento para as tropas, disse que estavam embarcando em uma “grande cruzada”, e que “os homens livres do mundo marchariam para a vitória” (NATIONAL ARCHIVES, 2022, tradução nossa.). 

O ataque começou nas primeiras horas do dia 6 de junho e durou o resto do dia, enquanto soldados Canadenses, Americanos e Britânicos avançavam sobre suas praias designadas, outros desciam pelos céus em paraquedas, e milhares de homens caíam sob as balas das metralhadoras alemãs. O ataque teria sucesso, e a última ofensiva da guerra começaria.

A França seria libertada e as tropas aliadas marchariam sobre uma Paris agradecida. A Polônia, a Checoslováquia, os Bálticos e os Balcãs seriam retomados. Luxemburgo, Bélgica, Países Baixos, Norte de Itália e eventualmente a parte ocidental da Alemanha cairiam sob o controle aliado. E em meados de Abril de 1945, o Exército Vermelho soviético avançaria sobre a própria Berlim, pondo fim definitivamente à experiência totalitária que era o regime de Hitler. Não muito tempo depois, após uma luta igualmente longa de muitas nações, o Japão se renderia, pondo fim à Guerra no Leste.

É comum, no clima político demagógico de hoje, atribuir a vitória da Segunda Guerra Mundial a uma nação ou conjunto de nações, a uma ideologia ou modo de vida, seja o liberalismo ocidental ou o socialismo soviético. A verdade é que a vitória foi trazida pelas nações do mundo, unidas, num esforço combinado de logística, moral, poder financeiro, poder industrial, trabalho humano, sacrifício, estratégia e batalhas vencidas. O poder combinado das potências atlânticas e da União Soviética foi o martelo, e a luta dos povos subjugados da Europa e da Ásia foi a bigorna que derrubou o eixo. É uma vitória e um mundo que o Brasil também colocou seus braços e esforços para construir.

Ainda vivemos no mundo que a vitória aliada criou. A Guerra Fria chegou, mas nunca esquentou. Embora ainda existissem lutas de dominação, a maior parte do mundo acabou por ser libertada do domínio colonial opressivo e continuou a marchar no difícil caminho do desenvolvimento. Embora hoje ainda existam potências expansionistas e nacionalistas, embora ainda haja guerras e tragédias, nada aconteceu na escala que foi a loucura das guerras mundiais. É nossa missão neste século manter este edifício da paz, com menos armas, e mais cooperação.

REFERÊNCIAS:

BADSEY, Stephen. NORMANDY 1944: Allied Landings and Breakout. London: Osprey Publishing, 1990.

CHURCHILL, Winston S. THE SECOND WORLD WAR: Volume V: Closing the Ring. Boston: Houghton Mifflin Company, 1951.

DA COSTA, Wanderley Messias. GEOGRAFIA POLÍTICA E GEOPOLÍTICA. São Paulo: Edusp, 1991.

EISENHOWER, Dwight D. GENERAL DWIGHT D. EISENHOWER’S ORDER OF THE DAY (1944). National Archives, 2022. Disponível em: https://www.archives.gov/milestone-documents/general-eisenhowers-order-of-the-day

KEEGAN, John. THE SECOND WORLD WAR. London: Pimlico Random House Company, 1989.

POAST, Paul. WE’RE STILL LIVING IN THE WORLD THAT D-DAY MADE. World Politics Review, 2024. Disponível em: https://www.worldpoliticsreview.com/d-day-invasion-ww2-politics/

ZAGOLA, Stefen J. THE ATLANTIC WALL (1). London: Osprey Publishing, 2007.