Manuelle Catunda Gaia – acadêmica do 5° semestre de Relações Internacionais da Unama.

Em fevereiro deste ano o diretor do escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) para os Territórios Palestinos Ocupados (OTP), Doutor Rick Peeperkorn, afirmou durante conferência de imprensa que “Todos os olhos estão voltados para Rafah”, ao passo que descrevia as tensões ao sul de Gaza e em volta do Complexo Médico Nasser, de onde realizou a conferência, hospital esse que dias depois viria a ser invadido e deixado inoperante pelo exército israelense (Health Policy, 2024). Na noite de 26 de maio, dois dias após a Corte Internacional de Justiça ter ordenado que Israel suspendesse sua ofensiva em Rafah, houve um bombardeamento em al-Mawasi, acampamento de desalojados antes declarado zona segura. Os ataques aéreos se estenderam por mais três dias, e segundo a jornalista palestina Hind Khoudary, a maioria das mortes foi de mulheres e meninas. Segundo o Ministério da Saúde de Gaza, em recente relatório, pelo menos 36,801 pessoas foram mortas e 83,680 feridas na guerra de Israel em Gaza desde 7 de outubro (Al Jazeera, 2024).

Após o ataque, uma imagem com vista aérea de um vasto acampamento organizado, com montanhas e um céu azul ao fundo, contendo a frase “All eyes on Rafah” (Todos os olhos em Rafah) gerada por inteligência artificial foi postada por um usuário com a ferramenta “Sua vez” no Instagram, ferramenta que permite compartilhar a imagem para seu próprio story em um clique. A imagem logo se tornou viral, sendo compartilhada mais de 40 milhões de vezes (Al Jazeera, 2024). Apesar disso, há críticas a serem feitas. Com tantos jornalistas cidadãos palestinianos em Gaza a arriscar as suas vidas para documentar as suas realidades no terreno, a imagem gerada pela IA pode parecer outra forma de apagamento digital. Rafah não se parece nada com isso: os seus céus estão cinzentos com a fumaça das bombas israelitas e não há filas ordenadas de tendas – muitas estão em chamas depois de terem sido bombardeadas com os seus ocupantes ainda dentro, e destroços estão espalhados entre elas (Al Jazeera, 2024).

Com as fronteiras do Egito fechadas, mais de um milhão de pessoas tiveram que fugir de Rafah sob ataques aéreos noturnos, informou a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA). Sem ter aonde ir, palestinos de Rafah e Nuseirat, cidade ao Centro de Gaza onde forças israelenses recentemente bombardearam uma escola gerida pela UNRWA, são forçados a buscarem abrigo em prédios em ruínas em Khan Yunis, ao sul. São inocentes condenados, destituídos de um lugar no mundo. Não é por acaso que os nazistas iniciaram a perseguição aos judeus privando-os do status civitatis, para poder convertê-los em “inimigos objetivos” (LAFER, 2009, p.148). Em análise com os estudos de Hannah Arendt, filósofa e teórica política, e à luz da teoria crítica das relações internacionais, pode-se abarcar os processos desumanizadores que palestinos estão sendo impostos a passar. Arendt explora a fragilidade dos direitos humanos. Tendo fundamentado suas principais obras em sua vivência como judia exilada durante a Segunda Grande Guerra, Arendt (1989, p.329) entendeu em seu livro “Origens do Totalitarismo” que a situação angustiante de refugiados de guerras não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles. Catherine Russell, diretora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), faz alerta para crise humanitária: “As crianças em Gaza vivem ao lado de montanhas de lixo e esgoto bruto, à medida que os serviços básicos atingem um ponto de ruptura devido aos contínuos combates e deslocamentos” (ONU News, 2024). Apesar de toda a pressão estadunidense e represália internacional sobre a ofensiva israelense e seus enormes impactos humanitários, o gabinete de Netanyahu segue afirmando que as “condições de Israel para acabar com a guerra não mudaram” (BBC, 2024).

Arendt (1989), ainda atual, chama atenção para essa inadequação dos Tratados de Paz e sua tradição de pensá-los a partir de guerras passadas, sem jamais realmente entender seu impacto na vida dos civis afetados (p.302). A crise humanitária em Rafah e região já é uma realidade. Em acordo com o pensamento de Hannah, essa contínua violência causa não somente sofrimento humano, mas também instabilidade nos fundamentos da civilidade. Portanto, a busca pela paz, além de humanitária, é também vital para que as pessoas possam exercer seu direito de não somente ter direitos humanos, como serem amparadas por eles.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo : Companhia das Letras, 1989.

BACHEGA, Hugo. No Gaza ceasefire until Israel war aims achieved, Netanyahu says. BBC, Londres, 1 de junho de 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/news/articles/c888p5p2zvxo . Acesso em: 9 de junho, 2024.

DOZENS feared dead in Israeli airstrike on UNRWA school in Gaza. United Nations, 2024. Disponível em: https://news.un.org/en/story/2024/06/1150721 . Acesso em: 8 de junho de 2024.

FLETCHER, Elaine. “All Eyes on Rafah” – Says Head of WHO Office for Occupied Palestinian Territory. Health Policy Watch, 2024. Disponível em: https://healthpolicy-watch.news/all-eyes-on-rafah-says-head-of-who-office-for-occupied-palestine-territories/ . Acesso em: 7 de junho de 2024.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

SHAMIM, Sarah. What is “All eyes on Rafah”? Decoding a viral social trend on Israel’s war. Al Jazeera, Doha, 29 de maio de 2024. Seção Israel-Palestine conflict. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2024/5/29/what-is-all-eyes-on-rafah-decoding-the-latest-viral-social-trend . Acesso em: 7 de junho de 2024.

WHAT happened when Israel attacked Rafah?. Al Jazeera, Doha, 28 de maio de 2024. Seção Israel-Palestine conflict. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2024/5/28/what-happened-when-israel-attacked-rafah . Acesso em: 7 de junho de 2024.