
Matheus Castanho Virgulino
Internacionalista
Da crise de Suez até a Guerra ao Terror, no despontar do século XXI, o Oriente Médio configurou-se como um dos principais pontos focais para as competições geopolíticas internacionais. A inesperada reaproximação entre a Arábia Saudita e o Irã, duas nações envolvidas em uma guerra fria prolongada, e de longo alcance, que se estende do Golfo Pérsico ao norte da África, pegou de surpresa a região, e estabeleceu a China como mediadora de peso, em questões de conflitos.
As origens dessa busca duradoura pelo domínio regional, remontam às transformações políticas multifacetadas que se desenrolaram no Oriente Médio após a crise do petróleo da década de 1970. O outrora estável Estado Imperial Iraniano, sob o reinado de longa data da dinastia Pahlavi, foi derrubado em 1979, pela revolução islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini. Esse evento serviu como um catalisador para impulsionar o islamismo, este sendo a aplicação ideológica do islã sobre questões políticas, como uma alternativa ideológica às correntes predominantes dos nacionalismos socialistas e liberais, que se espalhavam pelo Oriente Médio desde o fim da Segunda Guerra Mundial (LEWIS, 2004).
Khoumeni acreditava no conceito de Wilayat al-Faqih, ou “o governo dos juristas”, no qual, a autoridade de juristas islâmicos é reconhecida como autoridade teocrática, os mesmos são vistos como guardiões de um Estado islâmico e retém poder para aplicar a Sharia (LAFRAIE, 2009). Este conceito, apesar de ser mais prevalente nas correntes xiitas do Irã, entra em contraste com a perspectiva islâmica do reino da Arábia Saudita, apesar de ambos serem consideradas fundamentalistas e ultraconservadoras.
O Reino da Arábia Saudita adere à interpretação Wahhabi do Islã sunita, uma doutrina que leva o nome do renomado estudioso islâmico, Muhammad ibn Abd al-Wahhab. O objetivo principal dessa ideologia, é a restauração de uma forma mais autêntica e pura do Islã, fundamentada nos textos sagrados do Alcorão e do Hadith, como fontes definitivas de autoridade espiritual (LEWIS, 2004). Notavelmente, esta abordagem não nega a importância de uma autoridade secular, personificada na forma da casa real de Saud, que serve como guardiã das cidades sagradas de Meca e Medina.
A Revolução Iraniana e sua ideologia, representaram um desafio direto à Arábia Saudita, que se via como líder do mundo muçulmano, devido à sua posição de guardiã das cidades sagradas que formam o coração espiritual da ummah, a comunidade islâmica. Isso, combinado com o desejo de controlar a artéria econômica, que é o Golfo Pérsico, bem como, as tensões étnicas entre árabes e persas, no Irã, provou ser o caldeirão perfeito para a criação de uma guerra fria no Oriente Médio, que vem durando mais de 40 anos.
No âmbito das relações internacionais, o Reino da Arábia Saudita tem forjado historicamente uma aliança com os Estados Unidos, e o bloco ocidental, apesar de suas reservas ao liberalismo. Em contraste, o Irã se encontra sujeito a uma barragem de sanções econômicas, devido ao seu apoio a facções militantes e sua busca por capacidades nucleares. Consequentemente, o Irã gravita para outras potências revisionistas, incluindo a Rússia e a China, em sua busca por objetivos geopolíticos estratégicos.
Em tempos mais recentes, uma mudança considerável ocorreu na paisagem geopolítica. Os Estados Unidos, tendo se retirado de seus empreendimentos militares no Iraque e no Afeganistão, redirecionaram seus objetivos de política externa para conter a Rússia na Europa, e a ascendência da China, no Pacífico. A Guerra Civil do Iêmen, a principal arena para a proxy war entre o Irã e a Arábia Saudita, testemunhou um impasse prolongado, com o governo reconhecido internacionalmente, apoiado pelos sauditas, incapaz de derrotar os militantes houthis, que recebem apoio do Irã. Como resultado, o conflito mudou para uma fase de prolongadas negociações mediadas por Omã (LOFT, 2023).
Na última década, a China se esforçou diligentemente para se estabelecer como um mediador confiável e construtivo na dinâmica região do Oriente Médio. O ponto central de sua abordagem, é a promoção constante da cooperação econômica e o cultivo de uma ordem mundial multipolar, que serve como princípios básicos de sua política externa abrangente. Aproveitando esse entendimento mútuo, os esforços de mediação da China desempenharam um papel fundamental no marco histórico da normalização dos laços entre a Arábia Saudita e o Irã, em março de 2023, com ambos os estados concordando em restabelecer relações diplomáticas e dialogar para a resolução de controvérsias.
É importante reconhecer que a mudança atual, está ocorrendo dentro de um contexto mais amplo, em que ambas as nações estão realinhando suas prioridades em relação a considerações políticas e econômicas internas (FAROUK, 2023). Como tal, os desenvolvimentos recentes podem ser vistos mais como uma desescalada pragmática do que como uma resolução definitiva de divergências fundamentais de política externa.
A economia saudita sem dúvida, se beneficiou dos preços elevados da energia, mas a trajetória econômica global predominante, continua exibindo uma mudança gradual em direção à descarbonização nos mercados de energia. Assim, uma escalada em direção a um conflito direto com o Irã, colocaria em risco os investimentos estrangeiros e desviaria recursos da já substancial alocação do PIB, para gastos com defesa. Por outro lado, o Irã se encontra em uma situação totalmente contrastante (id.). A nação enfrenta uma profunda agitação econômica e social, à medida que a dissidência cresce em meio à repressão interna e aos abusos dos direitos humanos sob seu regime islâmico. Para o Irã, envolver-se em um conflito com a Arábia Saudita seria calamitoso, potencialmente representando uma ameaça existencial ao próprio regime dos aiatolás (id.).
Em conclusão, a atual détente entre a Arábia Saudita e o Irã, embora ofereça estabilidade temporária, provavelmente não resolverá a rivalidade de longa data e as profundas divergências ideológicas entre as duas nações. No entanto, esse desenvolvimento destaca a abordagem pragmática da China, como mediadora, nos assuntos do Oriente Médio, em relação aos Estados Unidos e a Comunidade Europeia. A mediação da China não apenas aumenta sua posição e influência geopolítica, mas também abre novos caminhos para o avanço de seu projeto econômico e aspirações como uma superpotência global.
Referências:
FAROUK, Yasmine. RIYADH’S MOTIVATIONS BEHIND THE SAUDI-IRAN DEAL. Carnegie Endowment for International Peace, 2023. Disponível em: https://carnegieendowment.org/2023/03/30/riyadh-s-motivations-behind-saudi-iran-deal-pub-89421
LEWIS, Bernard. A CRISE DO ISLÃ: GUERRA SANTA E TERROR PROFANO. São Paulo: Editora Zahar, 2004.
LAFRAIE, Najibullah. REVOLUTIONARY IDEOLOGY AND ISLAMIC MILITANCY: THE IRANIAN REVOLUTION AND INTERPRETATIONS OF THE QURAN. Londres: Tauris Academic Studies, 2009.
LOFT, Phillip. YEMEN: CONFLICT AND PEACE, 2021-2023. UK Parliament, 2023. Disponível em: https://commonslibrary.parliament.uk/research-briefings/cbp-9327/