
Keity Oliveira e Lara Lima (acadêmicas do 5º semestre de RI da UNAMA)
Uma das reflexões trazidas pelo filme “Uma História de Amor e Fúria” (2013), que conta a trajetória de um indígena que está vivo há 600 anos e acompanhou diversas épocas históricas, é de que ‘viver sem conhecer o passado, é viver no escuro’. A frase, repetida em determinados momentos do enredo, é o grande fio condutor do filme e pode ser utilizada para explicar a importância de se entender o processo de ocupação humana na Amazônia.
Ao falarmos sobre o contexto histórico de uma região e do surgimento de suas populações, não se trata apenas de destacar o que aconteceu ao longo da história, mas também, desconstruir relações e padrões enraizados num sistema colonial que ainda reverbera na atualidade para evitar que erros cometidos pelas sociedades se repitam.
A história da ocupação da Amazônia começou há mais de 14 mil anos atrás com a chegada de imigrantes asiáticos ao vale do Amazonas. No momento em que essas populações passaram a desenvolver a agricultura e viver em uma mesma área de terra, comunidades indígenas diversas emergiram na região. Esses povos viveram na Amazônia cerca de 2 mil anos antes da chegada dos europeus manejando a floresta de forma sustentável para sua sobrevivência e desenvolvimento (IMAZON, 2015).
No século 16, europeus chegaram no rio Amazonas, encontrando uma floresta habitada por povos indígenas de diversas culturas que sustentavam suas populações numerosas. A partir desse momento, durante a invasão e colonização portuguesa desse território, as populações indígenas foram reduzidas drasticamente, sobretudo por conta das doenças trazidas pelos europeus, iniciando-se assim, o lento genocídio contra as populações tradicionais com o uso de bioterrorismo, ferramenta de extermínio e dominação utilizada na colonização do território (VALENTE, 2022).
O terrorismo, segundo Bruce Hoffman (2017), é um fenômeno essencialmente político, no qual é utilizada a violência a fim de alcançar algum objetivo político de forma planejada. Já o Bioterrorismo seria a liberação deliberada de vírus, bactérias ou outros agentes, utilizados para causar doença ou morte em pessoas, animais ou plantas (CDC/Estados Unidos).
No livro “Armas, Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas”, o historiador, geógrafo e ornitólogo Jared Diamond (2013), argumenta que as enfermidades, propagadas por “germes” no continente europeu, são um fator essencial para a dominação dos povos no continente americano. Dessa forma, ao entrarem em contato com os habitantes daquela região, os colonizadores teriam, de forma intencional ou não, dado início às epidemias como a febre amarela, a varíola e o sarampo, que levaram à morte de milhões de povos originários.
Posteriormente, no século 19, a Amazônia estava composta por indivíduos miscigenados (indígenas, brancos e negros), que deixaram de concentrar seus esforços na coleta de recursos naturais e na agricultura para viver em função do ciclo econômico da borracha, que levou a uma intensa exploração de seringueiras e de produção de borracha na região, mobilizando milhares de trabalhadores na extração do látex, matéria-prima da borracha.
No mesmo período, iniciou-se a chamada Belle Époque (bela época em francês), a era de ouro da beleza, inovação e paz entre os indivíduos de países europeus e que teve suas influências espalhadas pelo mundo até chegar na Amazônia, nas cidades de Belém e Manaus, os centros da economia da borracha no país.
Porém, apesar do boom econômico, o ciclo alterou toda uma estrutura social de forma exterior as comunidades amazônidas que tinham conhecimentos primários do tratamento com a borracha e que não os trouxeram benefícios de caráter social. Para COSTA e LISBOA (2014), o período se tornou um mito do progresso que não refletiu ao aumento das desigualdades sociais e da diminuição dos territórios de indígenas por conta da exploração predatória causada pela “febre” extrativista da borracha.
Em meados do século XIX, o ciclo da borracha entra em crise devido à concorrência dos holandeses e ingleses, que cultivavam seringueiros em suas colônias no Sudeste Asiático e que ganharam o mercado internacional, com um preço acessível e com uma qualidade superior em relação à da borracha brasileira, dando fim ao famoso “Ouro Branco” que deixou de ter importância econômica e a região acabou passando por um período de estagnação.
Ao longo do governo Getúlio Vargas, a floresta amazônica sofreu muitas tentativas de colonização. Uma dessas invasões foi cometida pelos japoneses em 1940, visando cultivar juta, uma fibra de origem asiática, dentre outras especiarias que planejavam plantar. Nessa época também houve um segundo ciclo da borracha, durante a Segunda Guerra Mundial, em que o Japão ocupava a produção de seringueiros asiáticos e os Estados Unidos compravam novamente borracha brasileira, incentivando o governo que fazia campanhas que ficaram conhecidas como “Marcha para o Oeste” para atrair pessoas em sua maioria do nordeste para trabalhar nos seringais. Entretanto, ao final da guerra, os Estados Unidos voltaram a importar da Ásia e encerram os investimentos com o Brasil (IMAZON, 2015).
Em 1950, o governo federal planejou investimento na Amazônia, porém somente a partir de 1960 foi que os projetos de desenvolvimento começaram a ganhar força, sendo projetado obras rodoviárias, descobertas de minérios e a colonização agropecuária. A partir da década de 1970, houve a abertura de estradas como a Transamazônica e Santarém-Cuiabá, construção de hidrelétricas, criação de fazendas de gado, mineração de Carajás e do rio Trombetas, e outras obras do governo.
Com a instalação desses projetos, tanto a floresta como as populações tradicionais foram afetadas, gerando danos severos na Amazônia por consequência a substituição das conexões fluviais por conexões transversais das estradas, desencadeando o corte da floresta e dos grandes afluentes num ciclo infindável de desmatamento com o adensamento das estradas e o calor, a extração de madeira e a pecuária ligada a diversos conflitos sejam eles sociais ou ambientais (BECKER, 2001). Os conflitos sociais também estiveram bem presentes no final do século XX, marcado por diversas disputas violentas por terras nas áreas de fronteira e a prática da grilagem agrava mais ainda a situação.
As comunidades tradicionais da floresta reagiram e formaram sindicatos de movimentos sociais e rurais contra o desmatamento e a violência gerada pela instalação desses projetos desenvolvimentistas. Porém, essas pautas só vão ganhar força com o assassinato do líder sindical Chico Mendes, em 1988, considerado um grande marco para a história da floresta. Com a sua morte, o governo sofreu diversas pressões, até mesmo internacionais no que diz respeito às políticas pensadas para a Amazônia, levando-o a diminuir os investimentos para a expansão na região e tomar iniciativa do controle do desmatamento, porém a situação pendurou até 2004 (IMAZON, 2015).
Sob pressão, o Brasil buscou criar Unidades de Conservação com mais de 500 mil quilômetros quadrados para preservar as áreas. Com essa iniciativa, o índice de desmatamento de 2004, caiu de 28.000 km², para 5,8 mil km² em 2013 (IMAZON, 2015). Também assumiram um compromisso de que até 2020, iriam diminuir o desmatamento em 80%, para isso tomaram medidas como autorização para desmatar e obrigação de reflorestar, porém, não obtiveram muito êxito.
Desde 2019, a taxa de desmatamento bateu recordes e recordes na Amazônia, o PRODES, que é um sistema responsável pela taxa de desmatamento, apresentou uma alta entre 2018 e 2021 de 73% (INFOAMAZONIA, 2023). Segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a destruição da floresta em 2022, se compara a duas vezes a área do Distrito Federal, tendo em vista os incentivos da mineração e desmatamento no governo Bolsonaro. Nos três primeiros meses do governo Lula, dados do INPE relatam que 844,6 km² de floresta amazônica foram destruídos, e é a segunda série histórica alarmante de desmatamento, perdendo somente para o período de 2022 (COLABORA, 2023).
Portanto, a história da região tem sido, da chegada dos colonizadores à Amazônia até os dias atuais, uma trajetória de perdas e danos, segundo afirma LOUREIRO (2002). Ao longo do tempo, a história da Amazônia vem sofrendo tentativas de ser escrita por estranhos à região e por pessoas que são moldadas dentro de um sistema ainda colonial. Colocar o passado da região em perspectiva é entender que feridas históricas permanecem e devem ser relembradas para que situações como aquelas não ocorram novamente.
Por fim, é necessário frisar a importância da participação da sociedade civil em soluções para as problemáticas que atingem a região. Aliar o conhecimento científico com o conhecimento tradicional das comunidades é um novo paradigma fundamental no mundo geopolítico contemporâneo. A atuação de articulações subnacionais e nacionais que atuam de forma coletiva, se faz essencial para estruturar transformações significativas para a manutenção e conservação do bioma e de suas populações locais.
“O ciclo dos últimos quatrocentos anos pode ter sido um tempo longo, mas talvez necessário e suficiente, para uma tomada de consciência e para a construção de um projeto de vida autenticamente amazônico, compatível com a gente, o rio, a mata, os verdadeiros mitos da terra e com a modernidade de um novo século.” (LOUREIRO, 2002, p. 120)
Diante dos fatos mencionados, recomendamos dois documentários, o primeiro se chama “Amazônia – Herança de uma Utopia” (2005), dirigido por Alexandre Valenti e aborda as diversas tentativas de colonização na Amazônia brasileira ao decorrer do século XX. O longa expõe as mudanças ecológicas, demográficas, políticas, econômicas numa visão mais objetiva sobre a intervenções na região. Está disponível para ser assistido no streaming da Apple TV.
O segundo documentário intitulado de “Amazônia – O Despertar da Florestania” (2019), dirigido por Christiane Torloni e Miguel Przewodowski, vai retratar como a política e a destruição podem andar de mãos dadas, conforme o interesse de quem detém o poder. Também aborda sobre como o país continua destruindo a floresta pensando apenas no desenvolvimento econômico. O documentário se utiliza de entrevistas, depoimentos e imagens que mostram a luta dos povos para manter a floresta de pé, desde a ditadura empresarial militar. Está disponível para ser assistido no Youtube, através do link a seguir:
< https://youtube.com/playlist?list=PLBdg4VamtSRPYxfF9lIeqFR_xZ7szln6w >
Além desses, indicamos também o filme citado no texto, “Uma História de Amor e Fúria” (2013), dirigido por Luiz Bolognesi. No longa, um indígena com quase 600 anos de idade acompanha a história do Brasil, enquanto procura a ressureição de sua amada Janaína. Ele perpassa por diversos eventos históricos, desde o período colonial até os movimentos de resistência contra a ditadura militar. O filme está disponível para ser assistido no streaming da Netflix.
Por fim, evidencia-se o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (Naea), da Universidade Federal do Pará, referência na Amazônia no ensino em nível de pós-graduação em desenvolvimento regional sustentável. Seus principais objetivos são a identificação, a descrição, a análise, a interpretação e o auxílio na solução de problemas regionais amazônicos e a difusão de informações dentro da realidade amazônica, desenvolvendo e priorizando a interação entre o ensino, a pesquisa e a extensão.
Para mais informações, acesse:
Site institucional: < http://www.naea.ufpa.br/ >
Instagram: < https://www.instagram.com/naea.ufpa/ >
REFERÊNCIAS
BECKER, Bertha. Revisão das políticas de ocupação da Amazônia: é possível identificar modelos para projetar cenários?. 2001. Disponível em: < https://docs.ufpr.br/~adilar/GEOPOL%C3%8DTICA2019/Geopolitica%20da%20Amazonia/Amaz%C3%B4nia_Pol%C3%ADtica%20de%20ocupa%C3%A7%C3%A3o.pdf > Acesso em: 06 de maio de 2023
CDC – Centers for Disease Control and Prevention. Bioterrorism. Disponível em: < https://emergency.cdc.gov/bioterrorism/ > Acesso em: 05 de maio de 2023.
COLABORA. Destruição sem tréguas na Amazônia nos 100 dias do Governo Lula. 2023. Disponível em: < https://projetocolabora.com.br/ods13/destruicao-sem-treguas-na-amazonia-nos-100-dias-de-governo-lula/?amp=1 > Acesso em: 06 de maio de 2023
COSTA, Maycon Yuri Nascimento; LISBOA, João Santiago. Belle époque amazônica: a apropriação dos saberes nativos e o mito do progresso. Jusbrasil. 2014. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/artigos/belle-epoque-amazonica-a-apropriacao-dos-saberes-nativos-e-o-mito-do-progresso/112071426 > Acesso em: 05 de maio de 2023.
DIAMOND, Jared M. Armas, Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas. 15º ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. Acesso em: 05 de maio de 2023.
IMAZON. A floresta habitada: História da ocupação humana na Amazônia. 2015. Disponível em: < https://imazon.org.br/a-floresta-habitada-historia-da-ocupacao-humana-na-amazonia/ > Acesso em: 05 de maio de 2023.
IMAZON. Linha do tempo: Entenda como ocorreu a ocupação da Amazônia. 2013. Disponível em: < https://www.google.com/amp/s/imazon.org.br/imprensa/linha-do-tempo-entenda-como-ocorreu-a-ocupacao-da-amazonia/amp/ > Acesso em: 06 de maio de 2023
INFOAMAZONIA. Aceleração do desmatamento nos últimos meses de 2022 traz desafios para política ambiental de Lula. 2023. Disponível em: < https://infoamazonia.org/2023/01/27/aceleracao-do-desmatamento-nos-ultimos-meses-de-2022-traz-desafios-para-politica-ambiental-de-lula/ > Acesso em: 06 de maio de 2023
LOUREIRO, Violeta R. Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re)construir. Estudos Avançados, 16 (45). 107-121. 2002. Disponível em: < https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9872 > Acesso em: 07 de maio de 2023.
Uma História de Amor e Fúria. Direção: Luiz Bolognesi. Produção: Caio Gullane et al. Brasil: Europa Filmes, 2013. 1 DVD (75 min), som, cor. Acesso em: 05 de maio de 2023.
VALENTE, Ana Beatriz. Bioterrorismo como herança colonial no Brasil: o genocídio indígena ao longo da história. Decoloniais. 2022. Disponível em: < https://decoloniais.com/bioterrorismo-como-heranca-colonial-no-brasil-o-genocidio-indigena-ao-longo-da-historia/ > Acesso em: 05 de maio de 2023.