
Camila Neris (acadêmica do 5º semestre de RI da UNAMA)
As abordagens feministas se estabelecem como teoria das Relações Internacionais por volta dos anos 80, um início tardio se comparado a outras disciplinas das Ciências Humanas. (TICKNER, 1997) Ao se deparar com a completa ausência de trabalhos feministas no campo da política internacional, a professora de Relações Internacionais estadunidense, Judith Ann Tickner passa a se dedicar ao desenvolvimento de um ponto de vista feminista e se torna uma das pioneiras nos estudos de gênero em RI.
Em suas primeiras publicações, Tickner questiona por que a política internacional é percebida como um universo masculino e como a exclusão das mulheres acontece na política. No artigo intitulado “Hans Morgenthau’s Principles of Political Realism: A feminist reformulation” (1995), o foco está na natureza da disciplina, no qual a autora aponta como problemática a separação de assuntos entre “high politics”, que seriam os assuntos que compõem temas tradicionais de RI como guerra, militarização e economia e os demais assuntos como internos, sendo questões de gênero uma delas. Desse modo, ignora-se a influência das diferenças de gênero na construção da política, uma vez que estas pautam as relações sociais e se institucionalizam dentro do Estado, influenciando seu comportamento diante do sistema internacional (GARELHA; MASO; PRETURLAN, 2017).
Outro aspecto levantado pela autora para desmistificar a natureza masculina da disciplina é o fato de que são homens que compõe maioria na esfera decisória internacional e também são homens que escrevem as teorias para explicar e descrever o comportamento dos Estados e fenômenos internacionais, portanto é esperado que a visão masculina também seja encontrada nestas teorias.
O termo “masculinidade hegemônica”, cunhado pela autora, serve para descrever o modelo ocidental de masculinidade, pautado em um comportamento agressivo, competitivo e “racional”. Esse comportamento por vezes é reproduzido por Estados, que partem disto para elaborar sua política externa, buscando racionalidade, hegemonia e autonomia. Tais objetivos e tendências foram responsáveis por cristalizar conceitos definidos por teóricos de Relações Internacionais que buscam justificá-los e encorajá-los, como o conceito de anarquia, equilíbrio de poder, poder-força e deterrence (TICKNER, 1988).
Enquanto existe um ideal de masculinidade, existe a sua antagonista: a feminilidade, que se traduz na associação de mulheres à fragilidade, interdependência e emoção. Desta forma, em um sistema binário anarquia/ordem, feminino/masculino, percebe-se a busca por afirmação da masculinidade e rejeição a tudo que remete à feminilidade.
As diferenças de gênero inclusive proporcionam formas de socialização diferentes para homens e mulheres. Para Tickner (2001, p.17 apud MONTE, 2013), mulheres costumam ser criadas em relações que estimulam a cooperação e o diálogo, por isso são as mais adequadas para liderar resolução de conflitos, tal inferência está apoiada em evidências do aumento da participação de mulheres em missões de paz da ONU e no maior êxito delas na conquista da paz. Além disso, a posição de subordinação e o maior envolvimento com outros grupos minoritários permite a elas a capacidade de elaborar políticas de um ponto de vista mais abrangente e sem o interesse na manutenção de um status quo, defendido por teóricos tradicionais.
Dando continuidade às suas pesquisas, Tickner se aprofunda em questões de segurança nacional. A masculinidade hegemônica que permeia as relações entre Estados se mostram agente de insegurança, apesar de agir com a premissa de diminuí-la, se mostrando disfuncionais. Para tanto, no livro “Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security” (1992), a teórica propõe a elaboração de uma nova concepção de segurança nacional sem as construções de diferença de gênero a partir de mudanças na hierarquia onde as políticas são feitas, incluindo mais mulheres em cargos de poder, maior valorização ao papel da mediação e ao mesmo tempo deixar de glorificar os “guerreiros”.
Ann Tickner traz grandes contribuições ao inserir a discussão de gênero na disciplina, promove reflexões importantes para a epistemologia das Relações Internacionais, leva a questionar se o que é considerado mainstream no campo teórico é necessariamente a realidade e quais mudanças podem ser feitas a partir da inclusão da perspectiva feminista na construção da política externa e segurança nacional mais pautada em diálogo e mediação de conflitos.
REFERÊNCIAS
GALHERA, Katiuscia Moreno; MASO, Tchella; PRETURLAN, Renata. Entrevista com J. Ann Tickner. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 6, n. 11, p. 15-23, 2017.
HAREL-SHALEV, Ayelet. Feminist International Relations (IR) Theory. The Palgrave Encyclopedia of Global Security Studies, v. 1, n. 2, p. 1-5, 2020.
MONTE, Izadora Xavier do. O debate e os debates: abordagens feministas para as relações internacionais. Revista Estudos Feministas, v. 21, p. 59-80, 2013.
TICKNER, J. Ann et al. Gender in international relations: Feminist perspectives on achieving global security. Columbia University Press, 1992.
TICKNER, J. Ann. Hans Morgenthau’s Principles of Political Realism: A Feminist Reformulation (1988). International Theory: Critical Investigations, p. 53-71, 1995.
TICKNER, J. Ann. You just don’t understand: troubled engagements between feminists and IR theorists. International Studies Quarterly, v. 41, n. 4, p. 611-632, 1997.