Matheus Castanho Virgulino – Internacionalista

Os Estados, apesar de por sua própria natureza serem soberanos e deterem império sobre seus territórios internacionalmente reconhecidos, não estão isentos das grandes transformações globais e suas influências no âmbito interno. Do ponto de vista da defesa e segurança internacional, a Guerra Fria representou uma mudança fundamental da lógica do conflito armado, ao impulsionar conflitos híbridos e insurgências motivadas por fatores ideológicos.

O golpe militar de 1964, que deu início a mais de 20 anos de ditadura militar no Brasil, configura-se, não apenas no mais amplo contexto de conflito ideológico da Guerra Fria, mas também na dinâmica interna da nação Brasileira. O norte, de baixa densidade populacional e de matriz econômica, focada na agropecuária e em commodities, encontrava-se em uma situação de periferia, em relação ao resto do país. No âmbito externo, a revolução Cubana de 1959, trouxera o conflito ideológico entre capitalismo e socialismo para o centro da política latino-americana (VISENTINI; PEREIRA, 2010). Foi nesse quadro que surgiu a Guerrilha do Araguaia.

A Guerrilha do Araguaia, assim chamada devido a região do rio Araguaia entre o Pará e o Tocantins, foi uma insurgência armada contra o regime militar brasileiro entre os anos de 1966 e 1975 (PEIXOTO, 2011). Sendo de caráter comunista, foi formado por militantes do PCdoB, que diferentemente do PCB, tinha inspiração maoísta. Seu objetivo principal era, por meio das táticas de guerrilha, iniciar uma “guerra popular” baseada na previamente, bem-sucedida, revolução cubana e a vitória comunista na guerra civil chinesa em 1949.

Pode-se dizer, que a guerrilha do Araguaia surgiu como uma necessidade da esquerda brasileira, após o geral desmoronamento das resistências urbanas ao golpe militar de 1964. Mais do que isso, encontrava-se em um panorama maior de insurgências, de inspiração marxista que surgiram em boa parte do chamado “terceiro mundo”, após a segunda guerra mundial. A guerrilha do Araguaia seguiu a tendência de outras forças armadas comunistas, muitas vezes de maneira contra-produtiva, permitirem que considerações ideológicas tivessem influência prática na formulação de estratégia. Neste caso, o plano dos guerrilheiros era, de a insurgência se tornar um ponto focal para os dissidentes do governo pelo Brasil, especialmente por parte da população local que na sua maioria era de imigrantes nordestinos em situação de trabalho precária.

Apesar disso, a guerrilha fracassou em agregar apoio popular local substantivo, com seus cerca de 60 guerrilheiros sendo compostos na maioria por ex-estudantes e demais membros da sociedade urbana (RIDENTI, 2005). Por uma série de operações militares, começando em 1972, os membros da guerrilha foram lentamente capturados ou mortos pelo regime militar, estas operações sendo a maior mobilização do exército desde a segunda guerra mundial. Inúmeros casos de tortura, execuções sumárias e tratamento indigno foram cometidos contra os guerrilheiros e a população local, o que fez com que fosse aberto um processo contra o Estado Brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORTE IDH, 2010). O regime militar listava muitos dos capturados ou mortos como “desaparecidos”.

É importante contextualizar a guerrilha do Araguaia dentro dos postulados teóricos do marxismo, assim como do pensamento de estratégia militar do Partido Comunista Chinês. O conceito de “guerra popular”, este que ainda faz parte da doutrina militar chinesa, pode ser caracterizado como uma aplicação do conceito da luta de classes e da conscientização do proletariado dentro de um conflito armado. De acordo com Mao Zedong, a guerrilha, apesar de ser considerada um tipo de guerra “primitivo” é o estágio inicial de uma revolução popular, tendo como objetivo final a derrubada de uma estrutura social reacionária e alienante (TSE-TUNG, 1989). 

O que era uma insurgência, tornou-se um debate acerca dos direitos humanos em um Brasil desprovido do primado da lei e do Estado democrático de direito. Agora, após quase 40 anos da redemocratização da nação brasileira, precisa-se analisar a culpabilidade do Estado em seus crimes cometidos contra os próprios cidadãos de sua pátria, independente de suas motivações. Os eventos ocorridos no Araguaia nos demonstram que o Estado, como entidade jurídica, não pode dar anistia a si mesmo.

Referências:

PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. MEMÓRIA SOCIAL DA GUERRILHA DO ARAGUAIA E DA GUERRA QUE VEIO DEPOIS. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 6, n. 3, p. 479-499, set.-dez. 2011.

VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevicz. HISTÓRIA MUNDIAL CONTEMPORÂNEA (1776-1991). Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2010.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. GUERRILHA DO ARAGUAIA: A DÍVIDA HISTÓRICA COM OS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2010.

RIDENTI, Marcelo. O FANTASMA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

TSE-TUNG, Mao. ON GUERRILLA WARFARE. Washington D.C: U.S Marine Corps, 1989.