Keity Silva de Oliveira (acadêmica do 5º semestre de RI da UNAMA)

O protagonismo indígena brasileiro ganhou força nos últimos anos, onde é possível observar a atuação desses em diferentes espaços públicos e políticos para garantir a defesa de seus direitos, das florestas, da demarcação das terras e da valorização de suas culturas e tradições. Os esforços feitos por eles para costurar uma articulação ampla e potente em nível nacional como forma de resistência contra as políticas de destruição e morte, é de suma importância para a compreensão de que a existência dessas populações deve ser respeitada e valorizada, sobretudo pelo seu papel fundamental na manutenção e conservação da Mãe Natureza e seus elementos.

A teoria neoliberal das Relações Internacionais se diferencia de outras lentes teóricas por ter como uma de suas principais características, o fato de assumir que os Estados não são os únicos atores decisivos para se compreender as dinâmicas que permeiam o sistema internacional, e em certa medida, não devem ser privilegiados nos modelos de análise em detrimento de outros atores, como ocorre com a tradicional corrente realista que enfoca todas as decisões de uma nação no Estado.

Nessa perspectiva, um dos principais conceitos recorrentes na teoria Neoliberal é a Governança Global, discutida pelo cientista político James N. Rosenau em sua obra conjunta com Ernst-Otto Czempiel “Governance without Government: Order and Change in World Politics” (2000). Em uma definição geral, a Governança se refere a atividades que são sustentadas por objetivos compartilhados, que podem ou não, derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas, e que, não dependem somente de mecanismos formais para se firmar e alcançar o cumprimento pleno. Na obra, os autores discutem as possibilidades de existência de uma governança sem governo, através do conceito citado.

Para Rosenau, o conceito de governança, especialmente a governança sem governo, analisada em sua obra, é um fenômeno mais amplo, uma vez que abrange não somente as organizações internacionais, mas também, a sociedade civil e as instituições governamentais (ROSENAU & CZEMPIEL, 2000). Diante disso, os atores não-estatais irão começar a satisfazer seus interesses e necessidades sem necessitar de uma autoridade central para a tomada de decisões, em âmbito internacional. O teórico também explica que os indivíduos começaram a ter consciência de sua importância no cenário internacional e se articularam em cima disso (ROSENAU, 2008), fato que pode ser observado no aumento da participação dos povos indígenas em espaços políticos e de articulação.

O modo de sobrevivência e organização social das comunidades indígenas estão diretamente ligadas com a conservação da biodiversidade amazônida, no qual os povos tradicionais dependem dos recursos naturais da floresta para a sua sobrevivência, uma necessidade que vai muito além de uma produção de subsistência, relacionando-se com a conservação e a sacralização dos elementos da natureza, a partir dos mitos e saberes indígenas (SILVA & SOUZA, 2017). A terra-floresta, ou “urihi” – na língua dos Yanomami – trata-se de uma entidade viva para esses povos, inserida numa complexa rede cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos. Dessa forma, sua ligação diz respeito à proteção do planeta e da vida como um todo.

Em relatório feito pela ONU e conduzido pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) e pelo Fundo para Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC), em 2021, revelou-se uma forte conexão entre as terras indígenas e a conservação florestal na América Latina e no Caribe (FAO & FILAC, 2021). O estudo apontou que em terras indígenas, as taxas de desmatamento são mais baixas, o que revela a relação que os “guardiões” possuem com as florestas, protegendo-as, resguardando-as e conservando seus ecossistemas e biodiversidade.

Nesse sentido, a participação dos povos originários na manutenção dessas regiões, é de extrema importância para a manutenção e equilíbrio da vida. Na região amazônica, a conservação em níveis regionais e globais se dá a partir de um modelo de desenvolvimento socioambiental que possui como principal elo, o respeito e zelo pela natureza e seus elementos, praticado por essas populações.

Nos últimos anos, os povos originários vêm sofrendo as consequências deixadas pela agressão de atividades de cunho predatório sob suas terras, que cada vez mais crescem no território da Amazônia, atingindo não somente à natureza, mas também, os povos que habitam ali. Os empreendimentos devastadores como a mineração, hidrelétricas, estradas, portos e produção de monocultivos com o uso ostensivo de agrotóxicos culminam na implantação de um projeto de destruição e morte das populações indígenas, que desde o período colonial no Brasil, sofrem com a tentativa de apagamento de suas culturas, saberes e vidas.

Sob este viés, diversas etnias estão se mobilizando a fim de lutar pelos direitos constitucionais dados a eles. Em documento escrito no 18º Acampamento Terra Livre – ATL, em 2022, as principais lideranças indígenas do país afirmam que: “não há espaço para a divisão, para o sectarismo, para qualquer tipo de violência entre nós” (APIB, 2022).

Seja em espaços públicos, políticos ou de articulação, a população originária da Amazônia luta pelo seu direito de participação na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas que os dizem respeito, através do uso de ferramentas diplomáticas e da mobilização de suas comunidades nas ruas e em campos de tomada de decisões. Assim como lutam pelo aumento de representatividade indígena nas Casas Legislativas, espaços onde ocorrem as principais ameaças aos direitos fundamentais, assegurados pela Constituição Federal de 1988, onde possam estabelecer um diálogo institucional em condições de igualdade com todas as esferas governamentais e estaduais.

Ao se analisar o conceito de Governança Global de Rosenau com a luta indígena, é possível observar o crescimento da participação e do protagonismo de atores não-estatais em busca de seus direitos políticos e sociais, sem mais depender de ações decisivas feitas pelo Estado. Ao se unirem, lutam por um projeto civilizatório, ou uma nova governança, baseado nos princípios do respeito à democracia, aos direitos humanos, à justiça, ao cuidado com o meio ambiente e com a Mãe Natureza, um projeto que respeite a diversidade étnica e cultural de mais de 305 comunidades existentes no país. 

Em conclusão, postulando o teórico pós-moderno Michel Foucault, “onde há poder, há resistência” (FOUCAULT, 1988, p. 104). O ato de resistência e emancipação da consciência humana, em especial dos povos indígenas, é necessário para possibilitar mudanças e a desmitificação de saberes que naturalizem essa estrutura de poder que condiciona os direitos constitucionais dessa população.

“[…] seguimos e seguiremos juntos, resistindo contra os distintos projetos de extermínio que as elites, donos ou representantes do capital e seus sucessivos governantes e aliados no poder Legislativo têm articulado contra nós ao longo desses 522 anos […]” (APIB, 2022).

Diante da temática exposta, recomendamos dois documentários acerca do tema discorrido. O primeiro se chama “A Última Floresta” (2021), dirigido por Luiz Bolognesi e conta com o apoio do xamã Davi Kopenawa Yanomami. O longa retrata a vida e os costumes do grupo Yanomami e mostra como a presença ilegal da exploração de ouro no território está colocando em risco a população indígena e a floresta. O filme está disponível para ser assistido no streaming da Netflix.

O segundo se chama “Waapa” (2017), dos diretores Paula Mendonça, David Reeks e Renata Meirelles e propõe um mergulho inédito na infância do povo Yudja, no Parque Indígena do Xingu e os cuidados que acompanham seu crescimento. O curta-metragem mostra o brincar, a vida comunitária e as influências de uma relação espiritual com a natureza e como isso influencia em elementos que organizam o corpo-alma dessas crianças. O longa está disponível para ser assistido no streaming do Tamanduá TV, através do link a seguir: < https://tamandua.tv.br/filme/?name=waapa >

Além disso, recomendamos o trabalho feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, criada pelo movimento indígena no Acampamento Terra Livre (ATL) 2005. É uma instância de referência nacional do movimento indígena no Brasil, reunindo organizações indígenas regionais. Tem como objetivos, o fortalecimento da união dos povos, a articulação entre as diversas regiões e comunidades tradicionais do país, além de mobilizar os povos e articulações sobre a situação de seus direitos constitucionais.

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Por fim, destacamos a importância do Instituto Socioambiental – ISA, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), criado em 1994 e que atua principalmente, nas regiões do Vale do Ribeira, Xingu e Rio Negro. A organização atua ao lado de comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas para o desenvolvimento de soluções que protejam seus territórios, fortaleçam suas culturas e saberes tradicionais e desenvolvam economias sustentáveis. Entre seus principais objetivos, estão a defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural e aos direitos dos povos tradicionais no Brasil.

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REFERÊNCIAS

APIB. ATL 2022: Povos Indígenas unidos, movimento e luta fortalecidos. Publicado em: 14 de abril de 2022. Disponível em: < https://apiboficial.org/2022/04/14/atl-2022-povos-indigenas-unidos-movimento-e-luta-fortalecidos/ > Acesso em: 12 de março de 2023.

FAO and FILAC. 2021. Forest Governance by Indigenous and Tribal People. An Opportunity for Climate Action in Latin America and the Caribbean. Santiago. 2021. Disponível em: < https://www.fao.org/documents/card/en/c/cb2953en > Acesso em: 11 de março de 2023.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Acesso em: 11 de março de 2023.

ROSENAU, James. People Count! Networked Individuals in Global Politics. Boulder, CO: Paradigm Publishers. 2008. Acesso em: 11 de março de 2023.

ROSENAU, James; CZEMPIEL, Ernst-Otto. Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: Editora UNB, 2000. Acesso em: 11 de março de 2023.

SILVIA, Anne Emanuelle Cipriano da; SOUSA, José Rodrigo Gomes de. O Mito e o Rito na espiritualidade indígena: uma visão a partir dos Potiguara e Tabajara da Paraíba. Diversidade Religiosa, João Pessoa, v. 7, n. 1, p. 202-215, 2017. Acesso em: 11 de março de 2023.