
Matheus Castanho Virgulino – Internacionalista
Mais de 70 anos desde a queda de Berlim, 50 anos desde que tanques e soldados soviéticos marcharam pelas ruas de Praga e 30 anos desde os conflitos dos Bálcãs que nasceram com a morte da Iugoslávia, o espectro da guerra paira mais uma vez sobre a Europa. A luta entre a jovem democracia ucraniana e o titã russo definirá não apenas o futuro da aliança ocidental, mas também a dinâmica da guerra durante o século XXI.
Desde a Segunda Guerra Mundial, um dos maiores estigmas da comunidade internacional são as guerras de anexação territoriais, do tipo que levaram ao surgimento das potências do Eixo e os conflitos revanchistas do século XX. Foi a preocupação com esse tipo de mentalidade expansionista que levou à criação da Organização das Nações Unidas e de seu conselho de segurança, e tem papel central nas interpretações neoliberais de Relações Internacionais. No caso da Europa, os acordos de Helsinki de 1975 construíram um consenso baseado no respeito da integridade territorial entre os países e a renúncia do uso de armas para a resolução de disputas, de tal maneira a ter sido construída uma arquitetura de segurança que incluísse todos os países da Europa, incluindo a União Soviética e a sua posterior sucessora na forma da Federação Russa (EVANS; NEWNHAM, 1998).
O motivo da guerra na Ucrânia ter causado tanto alarme na comunidade Ocidental é em razão de ser uma guerra de anexação, uma que não foi vista desde a invasão Iraquiana no Kuwait em 1991. As potências Ocidentais operam sobre a expectativa de que se a Rússia não for parada na Ucrânia, seus próximos alvos serão outros países Europeus que outrora fizeram parte de sua esfera de influência ou controle direto, iniciando uma nova era de política externa baseada na expansão territorial. Essencial para a vitória dos Ucranianos é o apoio militar na forma de equipamentos e sistemas ocidentais mais tecnologicamente avançados do que os disponíveis aos ucranianos antes da invasão.
A indústria bélica opera em uma estrutura de mercado oligopólica devido aos altos custos associados com pesquisa e desenvolvimento, escala de produção, confidencialidade do processo de procuração e investimento em capital industrial e humano (GLISMANN; HORN, 1992 apud BLUM, 2019). Como resultante, no mercado de defesa existem poucas empresas que detêm a capacidade de investimento e especialização necessárias para suprir a demanda internacional de sistemas e armamentos.
No caso dos países Ocidentais, as suas empresas de defesa operam sobre um framework de controle e contabilidade fiscal estritos levando em consideração não somente fatores institucionais, mas também riscos associados à venda de determinadas armas para países potencialmente disruptivos, de tal maneira que na maior parte das vezes seus maiores clientes são os seus próprios países de origem (BLUM, 2019). Isso também significa que estas companhias produzem de acordo com a demanda direta dos governos, ou seja, não mantêm estoques extensos na reserva (id.). Isso resulta com que os países ocidentais tenham que fazer um jogo de equilíbrio de usar de suas próprias reservas até a produção bélica atingir um patamar de substituição e venda direta.
Do ponto de vista da economia de defesa, os Estados Unidos têm uma vantagem exorbitante em relação ao resto do mundo, sendo não somente a maior potência militar do planeta, mas também o maior exportador de armas no mercado internacional. O poderio Americano se dá não apenas por sua alta capacidade produtiva, mas também pelas suas empresas especializadas em produção e desenvolvimento bélico, estas que contam como as maiores do mundo. Como exemplos podemos citar a Lockheed Martin, a Raytheon Technologies, a General Dynamics e outras mais focadas em small-arms e demais equipamentos individualizados como a Smith & Wesson que juntas comportam um mercado de mais de 540 bilhões de dólares (MORDOR, 2023).
Os Estados Unidos têm sido o maior provedor de equipamentos militares para a Ucrânia, até o final de 2022 enviando mais de 25 bilhões em ajuda militar direta (MASTERS; MERROW, 2022). Nos estágios iniciais do conflito, foram enviados equipamentos feitos para conter a blitzkrieg russa e manter posições defensivas, como por exemplo os sistemas anti-tanque Javelin e Stinger assim como equipamentos de infantaria individual, posteriormente incluindo sistemas de artilharia HIMARS e Howitzers 155mm para o abate de posições russas. Com a captura de Kherson e Kharkiv, o foco dos Estados Unidos agora é dar aos ucranianos a capacidade de manter ofensivas prolongadas por meio de estratégias de armas combinadas para a reconquista de territórios sobre ocupação russa, para isso o atual pacote que incluí 31 tanques M1 Abrams e 300 veículos de transporte de tropas M113 (CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE, 2023).
No caso da Europa, dentro de seus estados individuais, suas indústrias de defesa não podem competir com os Estados Unidos, mas como uma unidade coesa e cada vez mais interdependente, eles são capazes de ir muito além de seu peso. De fato, desde o final da década de 1990, assistimos à consolidação de uma indústria de defesa europeia comum que transcende os Estados individuais. Houve um aumento de projetos de defesa pan-europeus nos últimos 20 anos e uma diminuição do viés de compras domésticas para a aquisição de equipamentos (KLUTH, 2017). Este processo, aliado à padronização da OTAN de alguns equipamentos, faz com que muitos países europeus compartilhem sistemas similares e sejam capazes de realizar grande interoperabilidade.
Algumas nações europeias, como a Polônia e os países bálticos, têm fornecido ajuda significativa à Ucrânia em proporção ao seu PIB, em alguns casos enviando a totalidade de um determinado equipamento (MASTERS; MERROW, 2022). A estratégia por trás disso não é somente porque essas armas foram armazenadas para lidar com a Rússia em primeiro lugar, mas também porque muitas delas eram equipamentos soviéticos antigos que são mais facilmente adaptados ao exército ucraniano, além de serem substituídos por equipamentos americanos mais modernos após seu envio. Tratando-se de países da Europa ocidental, a ajuda é mais substancial no quesito de qualidade, especialmente por parte da Alemanha, Reino Unido e França, que detêm empresas de peso como a Heckler & Koch, Dassault e Boeing. Estes países podem oferecer sistemas de alta tecnologia como os tanques Leopard A7 e Challenger, assim como a artilharia Caesar 19.5.
Não há dúvida de que a aliança ocidental está lidando com o problema colocado pela Rússia por meio de uma abordagem liberal das relações internacionais. É uma tentativa de preservar uma ordem mundial baseada em princípios de governança que se enraizaram desde o fim da Guerra Fria. A derrota da Rússia é imperativa para o objetivo de manter o princípio do multilateralismo e evitar um retorno à política das grandes potências no estilo do século XIX. No entanto, um ato de equilíbrio ainda é necessário: dar o suficiente para a vitória da Ucrânia, mas também não tanto a ponto de provocar uma escalada e uma guerra total no continente europeu entre o Ocidente e a Rússia.
Referências:
EVANS, Graham; NEWNHAM Jeffrey. DICTIONARY OF INTERNATIONAL RELATIONS. New York: Penguin Books, 1998.
CONGRESSIONAL RESEARCH SERVICE. U.S. SECURITY ASSISTANCE TO UKRAINE. Washington: United States Congress, 2023.
KLUTH, Michael. EUROPEAN DEFENSE INDUSTRY CONSOLIDATION AND DOMESTIC PROCUREMENT BASIS. DEFENCE & SECURITY ANALYSIS, [s.l.], 2017.
BLUM, Johannes. ARMS PRODUCTION, NATIONAL DEFENSE SPENDING AND ARMS TRADE: EXAMINING SUPPLY AND DEMAND. European Journal of Political Economy, [S.l.], p. 1-18, 25 ago. 2019.
MORDOR INTELLIGENCE. UNITED STATES DEFENSE MARKET: GROWTH, TRENDS, COVID-19 IMPACT, AND FORECASTS (2023 – 2028). Mordor Intelligence, 2023. Disponível em: https://www.mordorintelligence.com/industry-reports/united-states-defense-market