
Matheus Castanho Virgulino, Internacionalista.
A preservação da soberania de um Estado, a manutenção da lei e da ordem e a proteção das instituições públicas diante de insurgências e ameaças, são os principais deveres de uma força armada no sentido estrito do termo. Como retentores do uso da força juridicamente legitimada pelo Estado, e com um papel ademais essencial, não podemos deliberar sobre as forças militares sem levar em consideração sua relação com os governos e com a sociedade.
Em uma perspectiva histórica, o relacionamento entre as forças armadas do Brasil, a República que as regem, e a sociedade que servem, sempre foi marcada por contradições, atritos e desconfianças. A república Brasileira, independente das ideias liberais e democráticas que a inspiraram, nasceu em um contexto de golpe militar disfarçado de “proclamação” em 15 de novembro de 1889 com a destituição do regime monárquico até então em vigor (LESSA, 2019). Com os governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, iniciou-se a longa tradição de homens da farda no executivo, sejam por meios democráticos ou não.
Mesmo com a eleição de um presidente civil na figura de Prudente de Moraes em 1894, a influência das forças armadas não se desvencilhou do poder público. Manteve-se presença nas instituições durante a república oligárquica que emergiu da política dos estados de Campos Sales, os ruidosos anos 10 e 20 do novo século, assim como as crises institucionais e o governo Vargas que as seguiram. Essa participação política ativa, fora das amarras constitucionais que dão às forças armadas seu caráter apolítico, tem sua origem em um fenômeno que começa a consolidar-se já durante os findos dias do segundo reinado do Império: a formação de uma identidade política própria das forças armadas.
De acordo com o historiador José Murilo de Carvalho (2019), o exército brasileiro em especial, começando com a sua participação no núcleo republicano paulista e sua aderência aos ideais positivistas, começou a se consolidar como uma elite própria em contraste com as tradicionais burguesias urbanas e aristocracias rurais de maior presença na vida política. Mas acima disso, se fez uma mentalidade e projeto político independente dos salões de poder civis. Mesmo com a proclamação da república, esse esprit de corps continuou como forte motivador ideológico dos altos escalões militares durante o século XX.
Essa politização das forças armadas atingiu seu ápice durante a Guerra Fria, no contexto de profunda paranoia entre diferentes setores partidários e políticos rivais após o suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e a renúncia de Jânio Quadros em 1961. Um golpe era esperado por muitos, seja por Jânio Quadros ou seus opositores, mas, como diz José Murilo de Carvalho (2019), ninguém esperava um golpe seguido por mais de 20 anos de ditadura militar. As forças armadas, usando como justificativa a preservação da república e a proteção da nação contra uma “ameaça comunista” do presidente João Goulard, tomam as rédeas do aparato Estatal por meio de um golpe militar em 1964. Assim, foi dado um fim ao experimento democrático brasileiro sobre o marchar de botas e o rolar de tanques.
O que ocorreu no regime militar foi uma securitização do próprio Estado, uma mentalidade de sítio permanente, manifestado nas doutrinas de segurança nacional contrainsurgência e na censura de meios artísticos e jornalísticos. Surgiu-se uma cicatriz profunda nas relações civis-militares, que não desapareceu por completo após a redemocratização.
Enquanto no resto do mundo ocidental ocorreu um incentivo a integração entre a sociedade civil e as competências de defesa, como pode ser visto na inserção de especialistas civis nos estudos de segurança na Europa e nos Estados Unidos, na América Latina houve uma monopolização do aparato de segurança pelas forças armadas, como visto pelo fato de generais terem um poder institucional desproporcional nos ministérios de defesa em relação aos seus superiores indicados pelas autoridades civis (DIAMINT, 2018).
Os eventos de 8 de janeiro de 2023 demonstram claramente as complexidades deste processo. Um fênomeno observado no decorrer de nossa história militar é um ocasional desconexo entre o alto escalão militar e os membros de baixa patente. Enquanto, por um lado, em linhas gerais o alto comando de maneira sucetiva institucionalizou-se dentro dos moldes dos princípios republicanos, ainda existem tenentes e soldados rasos, assim como militares da reserva, que ainda contêm altos indíces de politização e alinhamento partidário.
O ex-presidente Jair Bolsonaro, em decorrência de seu viés ideológico apologético do regime militar, canalizou muitas destas tendências ao compor seu gabinete com generais e demais membros das forças armadas. Claro, como diz Diamint (id.) o código militar e seus aparatos jurídicos estabelecem regras bem estabelecidas acerca da restrição de militares da caserna em participação política e alinhamento partidário, levando em conta o caráter apolítico das forças armadas. Isso, no entanto, não impediu de indivíduos do exército participarem da insurreição ocorrida na praça dos três poderes, ou de alguns militares serem relativamente lenientes com os particantes do ato.
Estes ocorridos demonstram ainda uma relativa persistência da crise da identidade militar após a redemocratização, o anseio de setores dentro do corpo armado de terem papel ativo na política nacional. No entando, deve-se dar o mérito os sucessos da institucionalização das forças armadas nos moldes dos princípios republicanos, como visto por as forças armadas como organização de facto não terem participado ou aderido às tentativas de tomada do poder público desde o começo das manifestações ao entorno dos quartéis. O que isso demonstra, é que necessita-se consolidar o exército dentro de seu papel de força armada agindo em prol das instituições republicanas, e não em oposição à elas.
Uma democracia liberal, como é o caso do Brasil, tem a sua prosperidade diretamente atrelada à solidez e respeito de suas instituições. Mas além disso, é necessário cultivar a virtude cívica nos seus cidadãos, sejam militares ou não, para preservarem e valorizarem o processo democrático. Hoje, as forças armadas não são as mesmas da ditadura, mas ainda contêm setores com simpatizantes de ideais de extrema direita e nostalgismo do regime militar, vemos uma crise da identidade militar originada no fim do ambiente de securitização da ditadura. Para se sanar estas chagas, necessita-se uma modernização ideológica da classe militar, esta sobre regência da lei e do Estado democrático de direito.
REFERÊNCIAS:
LESSA, Renato. A PRIMEIRA DÉCADA: REPÚBLICA, NATUREZA, DESORDEM. In: BACHA, Edmar; CARVALHO, Jose Murilo de; FALCÃO, Joaquim et al (org.). 130 ANOS: EM BUSCA DA REPÚBLICA. São Paulo: Editora Intrínseca, 2019. cap. 1, p. 23-27.
CARVALHO, José Murilo de. FIM DE UM EXPERIMENTO DEMOCRÁTICO. In: BACHA, Edmar; CARVALHO, Jose Murilo de; FALCÃO, Joaquim et al (org.). 130 ANOS: EM BUSCA DA REPÚBLICA. São Paulo: Editora Intrínseca, 2019a. cap. 8, p. 143-147.
CARVALHO, José Murilo de. FORÇAS ARMADAS E POLÍTICA NO BRASIL. São Paulo: Editora Todavia, 2019.
DIAMINT, Rut. RELAÇÕES CIVIS-MILITARES. In: SAINT-PIERRE, Héctor Luis; VITELLI, Marina Gisela (org.). DICIONÁRIO DE SEGURANÇA E DEFESA. São Paulo: Editora Unesp, 2018. p. 799-814.