
Keity Oliveira (acadêmica do 5º semestre de RI da UNAMA)
Em decreto publicado no dia 01 de janeiro, o governo Lula oficializou a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o primeiro na história da política brasileira a ser dedicado exclusivamente às demandas indígenas. A pasta será comandada por Sônia Guajajara, a primeira ministra indígena do Brasil, eleita deputada federal em 2022. Para ela, nascida e criada na Terra Indígena (TI) Arariboia, a criação do Ministério é um “momento histórico” que simboliza o início de reparação da invisibilidade dos direitos indígenas e que reafirma o compromisso que Lula assume com os povos tradicionais ao longo de sua gestão.
O Ministério dos Povos Indígenas, segundo seu próprio documento, tem por função reconhecer, garantir e promover os direitos do povos indígenas; proteger os povos isolados e de recente contato; demarcar, defender e gerir territórios e terras indígenas; realizar monitoramento, fiscalização e prevenção de conflitos em terras indígenas e promover ações de retirada de invasores dessas terras (MODELLI, 2023).
Além da criação do Ministério, dois importantes órgãos que até então estavam vinculados ao Ministério da Justiça e Segurança Social, passam a integrar a pasta: a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), maior órgão de política indigenista do país desde 1967, e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), criado em 2015 por Dilma Rousseff para garantir a efetiva participação de representantes dos povos originários na formulação de políticas públicas no país. A integração dos órgãos na pasta é algo fundamental, principalmente após o contexto do governo de Jair Bolsonaro que se utilizou de diversos meios para controlar e realizar o sucateamento de instituições ambientais, extinguindo o CNPI e enfraquecendo as funções da Funai.
Um dos principais focos do recém-criado ministério será a retomada das demarcações de terras indígenas, política paralisada nos quatros anos do governo de Jair Bolsonaro. A Constituição Federal de 1988 determinou o uso das terras indígenas segundo seus costumes e tradições, garantindo assim, os direitos de demarcação dos territórios, porém, essa política não foi plenamente implementada até hoje.
O modo de sobrevivência e organização das comunidades tradicionais está diretamente ligada com a preservação e conservação da biodiversidade amazônida, isso porque estes povos dependem dos recursos naturais para a sua sobrevivência, uma necessidade que vai muito além de uma produção de subsistência e que se relaciona com a sacralização dos elementos da natureza (SILVA & SOUZA, 2017). Nesse contexto, o modo de vida das comunidades se opõe ao modo de produção capitalista, marcado pela exploração predatória e que se pauta em uma justificativa de viés científico-econômico que inviabiliza a subjetividade de pertencimento a um espaço.
O Brasil possui 722 terras indígenas conhecidas, que deveriam ser demarcadas até 1993, segundo a Constituição Federal. Porém, apenas 487 foram homologadas. Desde suas campanhas de governo, Bolsonaro já salientava que caso ganhasse as eleições, “não demarcaria nenhum centímetro a mais de terra indígena” (MADEIRO, 2021) e esta promessa se consolidou ao longo dos seus quatro anos de governo, no qual utilizou-se do chamado Marco Temporal, tese que propõe que sejam reconhecidos aos povos indígenas somente as terras que estavam ocupadas por eles na data de promulgação da Constituição Federal, para evitar novas homologações de territórios e do enfraquecimento de instituições voltadas para a proteção desses direitos.
A Funai será presidida pela deputada federal indígena Joênia Wapichana que reafirmou o desafio para retomada das demarcações de terras, algo que não depende somente de vontade política, mas que também precisa estar garantida pela União, através de orçamentos que priorizem ações para as comunidades tradicionais (MODELLI, 2023).
Durante seus quatro anos de gestão, Bolsonaro realizou o esvaziamento de órgãos voltados para o Meio Ambiente e chamou atenção do Brasil e do mundo com suas políticas e decisões anti-ambientais, sendo uma delas, o seu escolhido para presidiar a pasta do Ministério do Meio Ambiente, o advogado Ricardo Salles, nome alinhado com a sua aversão aos ecologistas e à conservação e que foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por participar de uma alteração ilegal do zoneamento de um plano de manejo de uma área protegida para beneficiar empresas de mineração (CAMARGO, 2020).
Ao longo de seu trabalho na pasta, Salles extinguiu o comitê gestor do Fundo Amazônia, que tinha seus recursos provenientes em sua maioria dos governos da Alemanha e da Noruega, fez a nomeação de vários policiais militares para cargos de chefias dentro de organizações ambientais como o ICMBio e o Ibama, realizando uma reestruturação completa nos órgãos e flexibilizou as multas por crimes ambientais, prática feita por meio do projeto de criação “Núcleo de Conciliação”, responsável por reduzir cada vez mais as multas por atividades ilegais na Amazônia (CAMARGO, 2020). Todas essas ações, em conjunto com o desmonte dos órgãos citados, resultaram no aumento da violência nos campos e nas comunidades indígenas através do garimpo ilegal. Formou-se então, uma verdadeira rede de necropolítica contra os povos tradicionais.
Diante disso, as consequências das decisões feitas por Bolsonaro e seus ministros já estão sendo perpetuadas pela Amazônia, através da emergência em saúde pública no território dos Yanomami, em Roraima. Em decreto publicado no Diário Oficial da União no dia 31 de janeiro, o presidente Lula da Silva, dispôs as principais medidas para enfrentamento da crise emergencial e do combate ao garimpo ilegal na TI (MANFRINI & LABOISSIÈRE, 2023). Entre as medidas, estão autorizados os ministros da Defesa, Saúde, Desenvolvimento Social e dos Povos Indígenas a requisitar bens, serviços e servidores necessários ao transporte de equipes de saúde, assistência e segurança para a região.
Cerca de 700 membros da comunidade estão passando fome e sofrendo de desnutrição aguda, principalmente as crianças, como resultado da negligência estatal e da falta de políticas públicas. O garimpo ilegal é um dos principais responsáveis pela emergência nacional, estando cada vez mais penetrante em áreas indígenas e de proteção ambiental.
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, presidido atualmente por Silvio Almeida, divulgou no dia 30 de janeiro, um relatório preliminar apontando ao menos 22 casos em que o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro omitiu violências ou ignorou recomendações feitas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (BARRETO, 2023). O caso, dentre inúmeros que ocorrem diariamente, é mais um reflexo do abandono e da negligência com os povos indígenas durante os últimos anos e que se consolida como um verdadeiro genocídio para a continuidade de atividades predatórias que lucram em cima de pessoas.
Destarte, apesar dos povos indígenas possuírem uma legislação especial, eles fazem parte da sociedade brasileira como um todo e é imprescindível que seus direitos sociais sejam promovidos e respeitados. Em um contexto necropolítico moldado pelo governo anterior, a criação de um Ministério dedicado as suas demandas e comandado por uma indígena, é de suma importância para garantir que os direitos humanos dos povos sejam concretizados. A situação emergencial dos Yanomami deverá ser apurada e enfrentada com o trabalho conjunto de todos os ministérios do governo Lula para que não aja mais omissão e negligência estatal.
Nesse sentido, para os Yanomami, a terra-floresta, ou “urihi”, não é um mero espaço inerte de exploração econômica. Trata-se de uma entidade viva, inserida numa complexa rede cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos. Davi Kopenawa Yanomami, xamã e líder indígena, afirma que, “a terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos” (TERRA, 2022) e enquanto os povos originários existirem em conjunto com a “urihi”, a mesma continuará viva com seus guardiões.
Diante da temática exposta, observamos a força que o protagonismo indígena brasileiro ganhou nas últimas décadas e vemos diversas lideranças indígenas, atuando em diferentes espaços públicos para garantir a defesa dos direitos dos povos originários, pela demarcação das terras e valorização de suas culturas e tradições. Assim, a equipe do Amazônia em Foco gostaria de destacar algumas das principais lideranças indígenas para que nossos leitores possam conhecer cada vez mais o trabalhado realizado por estas pessoas.
Raoni Metuktire – Cacique do povo Kayapó, nascido em 1930 e que é conhecido internacionalmente por sua luta pela preservação da Amazônia e dos povos indígenas. Raoni foi um dos representantes brasileiros a subir rampa com Lula durante posse presidencial, no dia 01 de janeiro de 2023.

Ailton Krenak – líder indígena, ambientalista, pesquisador e escritor que se dedica desde os anos 1980 à defesa dos povos tradicionais e do meio ambiente. Em 1985, fundou o Núcleo de Cultura Indígena para promover a cultura indígena. Em 2021, lançou a obra “Ideias para adiar o fim do mundo”, um dos livros mais vendidos das livrarias brasileiras, com versões lançadas em diversas línguas.

Sônia Guajajara – nascida na Terra Indígena (TI) Arariboia, é uma das lideranças indígenas femininas mais conhecidas. Sua militância em ocupações e protestos em defesa da demarcação de terras a levou a se tornar a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Em 2022, foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time e em 2023, tornou-se ministra do Ministério dos Povos Indígenas no governo Lula.

Txai Suruí – nascida dos Povos Suruí, em Rondônia, tem 24 anos e é a única brasileira indígena que discursou na COP26, em Glasgow para apontar a necessidade de defender a Amazônia contra o desmatamento. É coordenadora do Movimento da Juventude Indígena e trabalha na organização não governamental da defesa dos direitos indígenas Kanindé.

Joênia Wapichana – a primeira advogada indígena do Brasil, foi a primeira presidente da Comissão de Direitos dos Povos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), criada em 2013. Foi eleita para a Câmara dos Deputados, em 2018 por Roraima, sendo a primeira mulher a ocupar uma cadeira no Congresso Nacional. Em 2018, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

Davi Kopenawa – xamã e líder político do povo Yanomami, foi um dos responsáveis pela homologação e demarcação do território Yanomami, em 1992. Em 2010, lançou na França sua obra “A queda do Céu”, escrita em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert que representou um manifesto xamânico e autobibliográfico para denunciar a destruição do povo Yanomami. Em 2022, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Roraima (UFRR)

Daniel Munduruku – é um dos maiores autores indígenas da atualidade. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, tem mais de 54 livros publicados no Brasil e no exterior. Suas obras são compostas principalmente de literatura infanto-juvenil e livros paradidáticos que representam tradições, fábulas, contos e mitos de criação indígena.

Sonia Ará Mirim – é descendente do povo Xukuru-Kariri, mas foi acolhida pelos Guarani de São Paulo, tornando-se líder indígena dos Guarani Mbya que vivem na Terra Indígena Jaraguá, em São Paulo, a menor área indígena demarcada do país. Em janeiro de 2020, liderou o movimento de resistência contra a construtora Tenda que pretendia criar um empreendimento de alto padrão de cinco prédios no terreno vizinho da TI Jaraguá, sem ter realizado antes, um estudo de impactos ambientais na região.

REFERÊNCIAS
BARRETO, Kellen. Tragédia Yanomami: Ministério dos Direitos Humanos aponta 22 suspeitas de omissão do governo Bolsonaro. G1 Globo. Publicado em: 30 de janeiro de 2023. Disponível em: < https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/30/tragedia-yanomami-ministerio-dos-direitos-humanos-aponta-22-suspeitas-de-omissao-do-governo-bolsonaro.ghtml > Acesso em: 01 de fevereiro de 2023.
CAMARGO, Suzana. As táticas do governo brasileiro para sucatear órgãos de proteção ambiental. Mongabay. Publicado em: 22 de junho de 2020. Disponível em: < https://brasil.mongabay.com/2020/06/as-taticas-do-governo-brasileiro-para-sucatear-orgaos-de-protecao-ambiental/ > Acesso em: 01 de fevereiro de 2023.
MADEIRO, Carlos. Bolsonaro parou demarcações de terras indígenas e fez explodir ações do MPF. UOL. Publicado em: 16 de setembro de 2021. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/09/16/bolsonaro-parou-demarcacoes-de-terras-indigenas-e-fez-explodir-acoes-do-mpf.htm > Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
MANFRINI, Sandra; LABOISSIÈRE, Paula. Governo publica decreto com medidas para enfrentar emergência na terra Yanomami. CNN Brasil. Publicado em: 31 de janeiro de 2023. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/governo-publica-decreto-com-medidas-para-enfrentar-emergencia-na-terra-yanomami/ > Acesso em: 01 de fevereiro de 2023.
MODELLI, Laís. Como funcionará o inédito Ministério dos Povos Indígenas. DW. Publicado em: 03 de janeiro de 2023. Disponível em: < https://www.dw.com/pt-br/como-funcionar%C3%A1-o-in%C3%A9dito-minist%C3%A9rio-dos-povos-ind%C3%ADgenas/a-64269096 > Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
SILVIA, Anne Emanuelle Cipriano da; SOUSA, José Rodrigo Gomes de. O Mito e o Rito na espiritualidade indígena: uma visão a partir dos Potiguara e Tabajara da Paraíba. Diversidade Religiosa, João Pessoa, v. 7, n. 1, p. 202-215, 2017. Acesso em: 28 de janeiro de 2023.
TERRA, Marina. O futuro é indígena na terra-floresta Yanomami. Instituto Socioambiental. Publicado em: 03 de junho de 2022. Disponível em: < https://www.socioambiental.org/noticias-socioambientais/o-futuro-e-indigena-na-terra-floresta-yanomami > Acesso em: 01 de fevereiro de 2023.