Keity Oliveira (acadêmica do 4º semestre de RI da UNAMA)

O território amazônico abriga uma vasta sociodiversidade referente às comunidades tradicionais espalhadas pela região, fato registrado desde o período colonial na história regional. Ao longo da história do país, a partir da chegada dos portugueses, a vivência dessas etnias sempre foi marcada pela marginalidade, pela exclusão, pela desigualdade e pela invisibilidade, aspectos derivados de uma lógica capitalista dominante de exploração predatória, que as colocam em condição de maior vulnerabilidade, especialmente com fortes agravos à saúde. Nessa perspectiva, é necessário estudar a realidade vivenciada pelos povos indígenas e seu acesso aos meios de saúde, a partir de seu processo histórico de avanços e retrocessos.

A relação entre a sociedade e natureza são determinantes para a compreensão dos padrões existentes na exploração de recursos naturais e o padrão de consumismo na sociedade, aspectos que influenciam a saúde e qualidade de vida, ou uma determinante de desigualdade, doenças e escassez (COUTO, 2018). O território amazônico, por ser o berço de uma vasta biodiversidade, é submetida de forma contínua, à exploração predatória de seus recursos naturais que implica no aumento de problemas ambientais globais como as mudanças climáticas e a perda da biodiversidade, assim como nos impactos na saúde da população humana que decorrem de grandes projetos desenvolvimentistas na região.  

Para os indígenas, a saúde é uma construção coletiva, intimamente relacionada com a Mãe Terra e com uma relação equilibrada entre os seres vivos e a natureza. Desde os tempos anteriores ao período colonial, esses povos possuem seus sistemas próprios de saúde, que se articulam com os diversos aspectos de sua cultura e organização social, através do uso de plantas medicinais, rituais de cura e demais práticas de promoção da medicina, sob a responsabilidade de pajés, curadores e parteiras tradicionais (GARNELO & PONTES, 2012).

Sob esta perspectiva, os fatores determinantes de saúde e bem-estar indígena estão relacionados com a garantia de sua plena cidadania, autonomia de posse dos territórios tradicionais, à integridade e manutenção dos ecossistemas e à utilização de recursos naturais necessários para sua vivência. Porém, a realidade da situação é completamente diferente e essas populações vem se tornando cada vez mais socialmente vulneráveis devido as atividades exploratórias em seu território que afetam diretamente os problemas sanitários que ocorrem na região.

No livro “Armas, Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas”, o historiador, geográfo e ornitólogo Jared Diamond (2013), argumenta que as enfermidades, propagadas por “germes” no continente europeu, são um fator essencial para a dominação dos povos no continente americano. Dessa forma, ao entrarem em contato com os habitantes daquela região, os colonizadores teriam, de forma intencional ou não, dado início às epidemias que levaram à morte milhões de povos originários.

Nessa perspectiva, há tempos as populações indígenas são invisibilizadas no âmbito da saúde, aspecto que remonta ao contexto da colonização europeia sob esses povos, que durante a época, sofreram do chamado bioterrorismo, ou seja, a liberação de vírus, bactérias ou outros agentes, utilizados para causar doença ou morte em pessoas, animais ou plantas (CARDOSO & CARDOSO, 2011).

Destarte, os colonizadores e seus descendentes foram responsáveis por trazerem epidemias como a febre amarela, a varíola e o sarampo em seus primeiros contatos com grupos indígenas, doenças estrategicamente utilizadas para a espoliação de terras e para o contínuo genocídio das populações originárias. Algumas dessas enfermidades ainda são presentes em diversas regiões amazônicas, no qual aliadas a uma grave crise ambiental e sanitária, tornam-se as principais responsáveis pelas altas taxas de mortalidade de indígenas locais.

Outrossim, no contexto da pandemia global do COVID-19, a população indígena da Amazônia foi afetada de modo brutal pela mesma e segue sofrendo as consequências da doença. Em um estudo publicado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) na revista Frontiers in Psychiatry, em 2021, descobriu-se que as taxas de incidência e mortalidade pela COVID-19 na população indígena, foram, respectivamente, 136% e 110% mais altas que a média nacional (ZIEGLER, 2021). Além disso, o estudo também revelou uma relação direta entre a incidência de casos da doença em indígenas e desmatamento, grilagem e mineração.

A análise concebe mais um exemplo do bioterrorismo na prática, no qual houve a contaminação proposital do vírus em indígenas por parte de garimpeiros e madeireiros invasores (GIMENES, 2020). Sendo assim, a contínua vulnerabilidade das populações tradicionais cresceu ainda mais, através da manutenção de um projeto necropolítico adotado pelo Estado brasileiro e da adoção de políticas públicas inadequadas e ineficientes por parte do SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e da FUNAI (Fundação Nacional do Índio).

Desde a criação da FUNAI, em 1967, diferentes instituições e órgãos governamentais se responsabilizaram pelo atendimento médico das populações indígenas. Em 1999, houve a criação do Subsistema de Saúde Indígena do SUS, organizado em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei) e em 2010, graças à pressão de movimentos indígenas, foi criado a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) que possui vínculo com o Ministério da Saúde (GARNELO & PONTES, 2012).

Porém, apesar de serem órgãos essenciais, percebe-se que o alcance de sua universalidade ainda é um grande desafio na Amazônia, principalmente em relação as comunidades isoladas, onde há uma limitada governança por parte das autoridades sanitárias dos munícipios, consequentemente, atingindo as regiões em situações de maior vulnerabilidade social do território.

Sobre isso, Aguiar (2006), discorre que a região amazônica apresenta graves dados relacionados à prestação de serviços de saúde, no qual apenas 20% de seu território, possui essa cobertura, em comparação com as demais regiões, o que demonstra a restrição de ofertas e serviços de saúde para as populações locais. Soma-se a isso, a ineficácia administrativa que acarreta em um colapso no sistema de saúde pública, onde se verifica que em regiões com a presença dos povos tradicionais, há o enfrentamento de múltiplos problemas de infraestrutura, logística e ausência de políticas estatais para o desenvolvimento humano (DOMINGOS & GONÇALVES, 2019).

Portanto, a dinâmica do acesso à serviços básicos de saúde dos povos tradicionais apresenta um cenário de invisibilidade e escassez, colocando-os em uma situação de extrema vulnerabilidade e suscetibilidade a enfermidades trazidas por não-indígenas. Nesse sentido, a condição primordial para a manutenção da vida das comunidades em seu sentido pleno é a demarcação das terras indígenas, direito estabelecido na Constituição Federal de 1988 e que não foi realizado durante a gestão de Jair Bolsonaro e que se espera ser feito com a gestão de Lula da Silva. Além disso, é fundamental a estruturação de políticas de atenção diferenciada para resguardar e garantir a saúde desses povos para que a democratização do acesso aos serviços básicos seja garantida.

Diante da temática exposta, recomendamos dois documentários sobre a temática discorrida. O primeiro se chama “O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels” (2019), premiado na seção de documentários do 29° Festival Biarritz da América Latina. O documentário mostra as expedições do médico sanitarista Noel Nutels, que dedicou sua vida ao tratamento da saúde dos indígenas do Brasil. “Índio Cor de Rosa” era o apelido de Nutels, que em suas viagens às aldeias indígenas, entre as décadas de 1940 e 1970, tornou-se um dos primeiros sanitaristas a denunciar o genocídio dos povos indígenas no Brasil. A obra está disponível para ser assistida no YouTube, através do link a seguir:

< https://youtu.be/yHLFR8QGImQ >

O segundo se chama “Quando Falta o Ar” (2021), da médica Ana Petta e da cineasta Helena Petta que acompanha o trabalho dos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) em diferentes regiões do Brasil, enquanto lutavam para salvar vidas durante o auge da pandemia de Covid-19. Vencedor do Festival Internacional de Documentários “É Tudo Verdade” de 2022, o longa buscou ampliar o olhar de seus telespectadores sobre a complexidade da saúde em diferentes regiões do Brasil, em especial da Amazônia, onde os conhecimentos ancestrais das populações tradicionais precisaram se somar à medicina tradicional no intuito de salvar vidas. O documentário já foi apresentado no Festival, de forma presencial e online para o público, porém, é possível de se ver um debate feito com os realizadores do longa no YouTube, através do link a seguir:

< https://www.youtube.com/live/m5inznKDZqY?feature=share >

Outrossim, destaca-se o trabalho da ONG, Doutores da Amazônia, uma organização sem fins lucrativos que busca transformar o acesso à saúde indígena brasileira, oferecendo atendimentos especializados, com uso de técnicas e equipamentos modernos e avançados, sempre respeitando a ancestralidade de suas culturas e valores. Dessa forma, a ONG visa liderar projetos de assistência a populações em situação de vulnerabilidade, combatendo os efeitos da desigualdade, promovendo atendimento de qualidade, oferecido por profissionais de alta competência para proporcionar qualidade de vida e felicidade aos assistidos. A organização já atendeu mais de 18.000 indígenas de 60 etnias. Em 26 missões diferentes, já foram atuantes em terras indígenas na Amazônia por 283 dias. Para mais informações, acesse:

Site Oficial: < https://www.doutoresdaamazonia.org.br/ >

Instagram: < https://www.instagram.com/doutoresdaamazonia/?fbclid=IwAR1T-LRApHZJHdwMAtOVXEBARJmMIM3FPm8Q_4zQ5P33b11ZMiqSbEbgAGE >

Facebook: < https://www.facebook.com/doutoresdaamazonia/ >

Por fim, se destaca o trabalho feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), já citada anteriormente no quadro e que se apresenta como uma importante instituição de saúde que possui como objetivos, produzir, disseminar e compartilhar conhecimentos e tecnologias voltados para o fortalecimento e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) que contribuam para a promoção da saúde e da qualidade de vida da população brasileira. A Fiocruz apresenta um vasto material bibliográfico sobre saúde indígena e podem ser adquiridos de forma presencial ou online, através de suas bibliotecas virtuais de saúde (BVS) que reúnem diversas publicações de várias instituições e redes acadêmicas. Para mais informações, acesse:

Site Oficial: < https://portal.fiocruz.br/ >

Instagram: < https://www.instagram.com/oficialfiocruz/>

Facebook: < https://www.facebook.com/oficialfiocruz/ >

Twitter: < https://twitter.com/fiocruz >

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Gilberto Ferreira de Souza. Nutrição e adaptação humana em áreas de pesca na Amazônia: sugestões para políticas em saúde. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 1, n. 2, p. 129-138, 2006. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/bgoeldi/a/wzHXr5BcxJB3yvznYRqYp5D/abstract/?lang=pt > Acesso em: 19 de dezembro de 2022.

CARDOSO, Dora Rambauske; CARDOSO, Telma Abdalla de Oliveira. Bioterrorismo: dados de uma história recente de riscos e incertezas. Ciência & Saúde Coletiva. 2011, v. 16, p. 821-830. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/csc/a/Jwqw3gJkFhbTLvXjwpgTBWJ/?lang=pt# > Acesso em: 18 de dezembro de 2022.

COUTO, R. C. Saúde, Problemas Ambientais e Amazônia. In: COUTO, R. C.; ACEVEDO MARÍN, R.E. (org.). Hidrelétrica Belo Monte: impactos na saúde. Belém: Amazônica Bookshelf, 2018. P. 15-46. Disponível em: < https://periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/7280 > Acesso em: 18 de dezembro de 2022.

DIAMOND, Jared M. Armas, Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas. 15º ed. Rio Janeiro: Record, 2013. Acesso em: 18 de dezembro de 2022.

DOMINGOS, Isabela Moreira; GONÇALVES, Rubén Miranda. População ribeirinha no Amazonas e a desigualdade no acesso à saúde. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 11, n. 1, p. 99-108, 2019. Disponível em: < https://pdfs.semanticscholar.org/b35d/b98821e3915e3494126cd3ec7a0fe37293c7.pdf > Acesso em: 19 de dezembro de 2022.

GARNELO, Luiza; PONTES, Ana Lucia. Saúde indígena: uma introdução ao tema. In: Saúde Indígena: uma introdução ao tema. 2012. P. 296-296. Disponível em: < https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_indigena_uma_introducao_tema.pdf > Acesso em: 19 de dezembro de 2022.

GIMENES, Erick. Aumento da contaminação entre indígenas por garimpo ilegal preocupa ativistas. Brasil de Fato. Publicado em: 29 de abril de 2020. Disponível em: < https://www.brasildefato.com.br/2020/04/29/cada-invasor-em-terra-indigena-pode-gerar-1-6-mil-casos-da-covid-19-diz-pesquisador > Acesso em: 18 de dezembro de 2022.

ZIEGLER, Mariana Fernanda. Saúde precária e postura anti-indígena exacerbaram mortes por COVID-19 na Amazônia, avaliam cientistas. Agência Fapesp. Publicado em: 20 de agosto de 2021. Disponível em: < https://agencia.fapesp.br/saude-precaria-e-postura-anti-indigena-exacerbaram-mortes-por-covid-19-na-amazonia-avaliam-cientistas/36634/ > Acesso em: 18 de dezembro de 2022.