Keity Oliveira – acadêmica do 4º semestre de Relações Internacionais da UNAMA.

A resistência das mulheres do campo se mantém em continuidade a partir das lutas concretas, dos processos de formação e do envolvimento político em movimentos populares que buscam descortinar os elos de um sistema de dominação capitalista, patriarcal e racista, que as invisibilizam, mesmo com o papel fundamental que possuem na produção alimentícia, na luta contra a fome e na garantia de uma segurança alimentar para todos (ROJAS, 2020). Nesse sentido, é necessário destacar o protagonismo das mulheres organizadas na Via Campesina, que através de suas lutas, agem como resistência à exclusão e opressão do sistema vigente e se tornam a força vital de um grande coletivo multifacetado que busca a emancipação feminina e popular. 

Durante as últimas décadas, abordagens de estudos voltados para mulheres, gênero, feminismos e patriarcado estão cada vez mais presentes em espaços de pesquisa e conhecimento, no qual representam importância fundamental para se compreender, nos dias atuais, como as mulheres, se movimentam e criam resistências diante de estruturas sociais que historicamente foram criadas para legitimar condições de inferioridade e desigualdade a elas. No caso dos movimentos sociais, inserem-se as mulheres do campo e em seu bojo, as mulheres camponesas, atuantes na Via Campesina e que lutam por terra, soberania alimentar, dignidade e vida. 

La Via Campesina (LVC) é uma organização internacional, nascida no seio dos movimentos sociais da sociedade civil global, que reúne camponeses e camponesas articulados em redes que promovem processos de mobilização social dos trabalhadores do campo e a construção de uma via alternativa frente ao modelo dominante de produção. O movimento confronta diretamente o sistema de produção capitalista hegemônico e propõe a superação do neoliberalismo, através da defesa da reforma agrária popular, da soberania alimentar, dos direitos campesinos e da agroecologia (OLIVEIRA, 2021). 

Desde a invenção da agricultura, a contribuição das mulheres para o sustento da humanidade tem sido indispensável, em razão da participação direta das mesmas nos processos de produção alimentícia, manutenção e preservação da biodiversidade e o compartilhamento de saberes tradicionais agrícolas (OLIVEIRA, 2021). Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), as mulheres do campo são responsáveis por mais de 45% da produção de alimentos no Brasil, chegando a 80% em outros países latino americanos e caribenhos (FAO, 2017). 

Apesar dessas atribuições, a invisibilização dos trabalhos desenvolvidos por elas se torna cada vez mais latente dentro de uma estrutura predominantemente masculina e patriarcal. Assim, seja em âmbito local, nacional ou global, a luta feminina ecoa contra a subalternização e se organiza, de forma coletiva, para garantir sua efetiva participação em todas as instâncias e espaços de tomada de decisão para assumir a transversalidade da discussão sobre gênero (SEIBERT; GUEDES & MAFORT, 2022).

Sobre a atuação feminina, cabe destacar que nos últimos anos, as mulheres organizadas na Via Campesina, foram protagonistas de ações mais radicais e se posicionaram em lutas contra-hegemônicas (MENEGAT & SILVA, 2019). Nessa instância, há a realização anual de ações estratégicas por parte da “Jornada Nacional de Lutas das Mulheres Sem Terra” no dia 08 de março em vários estados brasileiros que visam promover estudos da realidade, organizando coletivos e a participação de mulheres camponesas de vários movimentos sociais para denunciar as violências estruturantes do sistema e a mercantilização da vida, dos territórios e da natureza. 

Além disso, cabe destacar também o ano de 2006, um marco histórico que simbolizou um grande ato de protesto feito pelas mulheres da Via Campesina contra o monocultivo de eucalipto no Rio Grande do Sul, no viveiro hortoflorestal da Aracruz Celulose. Na ação, elas destruíram diversas estufas e bandejas de mudas de eucalipto com o intuito de denunciar o êxodo rural provocado pela expansão das áreas de plantio da monocultura do eucalipto, a expulsão de pequenos produtores rurais de áreas próximas em função da escassez de água e as péssimas condições atribuídas aos trabalhadores contratados pelas empresas do setor (COSTA, 2011). Dessa forma, a ação obteve forte repercussão dentro dos movimentos sociais e representou a afirmação e construção de um feminismo camponês contra o capital. 

No campo teórico das Relações Internacionais, a teoria pós-moderna também representou uma mudança no modo de ver e de construir o mundo. A corrente apresenta uma descontinuação dos discursos dominantes, no qual reafirma a forma como as teorias tradicionais possuem como fundamento um viés positivista e uma lógica instrumentalizada numa linha de pensamento hierárquica, opressiva e excludente (REZENDE, 2010). Sendo assim, a corrente teórica traz como objetivo, a desconstrução das narrativas que se escondem por trás desses discursos, focando em sua investigação.

Michel Foucault é um dos principais representantes teóricos do pós-modernismo e se debruça na análise das condições históricas específicas da geração de conhecimento, no qual argumenta que o que é considerado racional e o que é tido como verdade, variam de acordo com o poder dominante em cada época (SARFATI, 2005). Dessa forma, a verdade é tida como um instrumento de poder para o autor, onde as produções de “verdades” serviriam como instrumento de resistência em relação às produções de práticas dominantes. Sob esse viés, Foucault (1970), discorre que o discurso dominante privilegia, reproduz e mantém estruturas sociais que são legitimadas e naturalizadas por esses discursos, reafirmando assim, uma relação de poder/saber baseada. 

Ao se analisar a atuação da luta feminina na Via Campesina com os postulados teóricos de Foucault, é possível observar a postulação de determinadas formas de saber-poder que justificam modos subjetivados de ser no mundo (FOUCAULT, 2010). O trabalho feito por essas mulheres procura a consolidação dos principais pressupostos do campesinato, porém, para além disso, busca a reivindicação de seus direitos sociais e garantia de produzirem conforme suas próprias realidades e necessidades, rompendo com as amarras do sistema dominante neoliberal, que através de seu saber-poder, provoca a subalternização dessas mulheres. 

Sendo assim, postulando Foucault, é necessário o ato de resistência e emancipação da consciência humana, em especial das mulheres, para fins de críticas aos discursos hegemônicos, possibilitando assim, a mudança e a desmitificação de saberes que naturalizem essa estrutura de poder (FOUCAULT, 1988).  

Portanto, a emancipação feminina popular das trabalhadoras do campo organizadas na Via Campesina está sendo construída na práxis, em diversas escalas de luta que alteram a vida social, econômica e política dessa classe. Essas mulheres, de forma diária, produzem rupturas e deslocamentos que abalam a estrutura patriarcal e dominante construída pelo sistema capitalista e apesar de ainda ser ter um longo caminho pela frente, sempre existiram possibilidades de resistências, no qual Foucault afirma que “onde há poder, há resistência” (FOUCAULT, 1988, p.104). 

REFERÊNCIAS

COSTA, Bianca. Protesto das mulheres na Aracruz completa 5 anos. MST. Publicado em: 04 de março de 2011. Disponível em: < https://mst.org.br/2011/03/04/protesto-das-mulheres-na-aracruz-completa-5-anos/ > Acesso em: 12 de março de 2022. 

FAO Brasil. Mulheres rurais são essenciais para a garantia da segurança alimentar. Publicado em: 16 de novembro de 2017. Disponível em: < https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1063661/ > Acesso em: 12 de dezembro de 2022. 

FOUCAULT, Michel. Estratégia saber-poder. Coleção Ditos & Escritos. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. Acesso em: 13 de dezembro de 2022. 

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Acesso em: 13 de dezembro de 2022. 

FOUCAULT, Michel. The Order of Things: Na Archaeology of the Human Sciences. New York: Random House, 1970. Acesso em: 13 de dezembro de 2022. 

MENEGAT, Alzira Salete; SILVA, Sandra Procópio. Mulheres camponesas em movimentos: análises da atuação feminina na via campesina, na caminhada para a soberania alimentar. Movimentação, v. 6, n. 10, p. 130-142, 2019. Disponível em: < https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/movimentacao/article/view/10660 > Acesso em: 12 de dezembro de 2022. 

OLIVEIRA, Beatriz Moreira. Terra, Comida, Dignidade e Vida: A Luta Feminina como Eixo Estruturante do Movimento La Via Campesina. Núcleo Feminista de Relações Internacionais – NEFRI. Disponível em: < https://www.nefri.org/post/terra-comida-dignidade-e-vida > Acesso em: 12 de dezembro de 2022. 

RESENDE, Erica Simone Almeida. A crítica pós-moderna/pós-estruturalista nas relações internacionais. Boa Vista: Editora da UFRR, 2010. Acesso em: 13 de dezembro de 2022. 

ROJAS, Viviana. O Feminismo Camponês e Popular, a identidade da mulher rural e mundo operário. MST. Publicado em: 11 de março de 2020. Disponível em: < https://mst.org.br/2020/03/11/o-feminismo-campones-e-popular-a-identidade-da-mulher-rural-e-mundo-operario/ > Acesso em: 12 de dezembro de 2022. 

SARFATI, Gilberto. Teoria das Relações Internacionais. 2005. Acesso em: 13 de dezembro de 2022. 

SEIBERT, Iridiani Graciele; GUEDES, Lizandra; MAFORT, Kelli. Por um feminismo camponês e popular: a trajetória da CLOC-Via Campesina. Capire. Disponível em: < https://capiremov.org/experiencias/por-um-feminismo-campones-e-popular-a-trajetoria-da-cloc-via-campesina/ > Acesso em: 12 de dezembro de 2022.