Kalwene Ibiapina – Internacionalista

Os sistemas eleitorais, que têm como base a democracia, buscam captar de forma eficiente, segura e imparcial o contingente de votos resultantes da manifestação popular elegendo, assim, um representante político sob um regime de legitimidade. No Brasil, as votações funcionam por meio de urnas eletrônicas desde 1996, desenvolvidas pela Justiça Eleitoral, sendo comprovadamente confiáveis e com poder de transparência que serve de referência mundial. Com efeito, devido a essa experiência, o Brasil já firmou diversos acordos de cooperação a fim de transmitir conhecimento sobre tal sistema para países interessados.

Apesar dos fatos, há meses o atual presidente da república, Jair Bolsonaro, vem criticando o sistema eleitoral eletrônico brasileiro (o mesmo que o elegeu), defendendo em contraposição a ele o voto impresso. Para além disso, difundiu informações de cunho duvidoso, dentre as quais a urna eletrônica não é confiável, pois apenas 3 países, incluindo o Brasil, a utilizam e que é impossível acompanhar a apuração de votos. Ainda afirmou que o próprio TSE – Tribunal Superior Eleitoral já havia reconhecido a falha no sistema.  Todas as alegações já refutadas pelo órgão.

Vale lembrar que, durante as eleições de 2018, o termo em inglês “fake news” se popularizou no Brasil, devido à contundente e consistente divulgação de notícias falsas por parte do, até então, candidato a presidente, Jair Bolsonaro. Informações, que sem dúvida, influenciaram as eleições a seu favor. Neste contexto, a pandemia acabou sendo um cenário perfeito para que ele se utilizasse das redes sociais a fim de difundir fake news acerca do novo coronavírus, de modo a desacreditar as informações da imprensa e órgãos oficiais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e assim manipular seus eleitores (seguidores) para tentar manter a economia funcionando, mesmo diante ao caos instalado pela crise sanitária.

As multidões possuem um caráter identitário que permite essa associação e é justamente a partir desta identificação que tais massas passam a seguir determinado líder, por exemplo. É claro que não necessariamente todas as pessoas do grupo seguirão de maneira indiscriminada tudo o que este líder propuser. No entanto, a afeição e a identidade, em conjunto ao estado de menor racionalidade, levam o indivíduo, em multidão, a atuar de acordo com as propostas deste “comandante” e a partir desse poder de influência, fica fácil produzir, criar e inventar qualquer tipo de informação e a ela ser dada veracidade.

A questão existente aqui subsiste justamente no regime sob o qual o mundo vive atualmente: o da pós-verdade. Segundo a Academia Brasileira de Letras, pós-verdade é um neologismo para conceituar a “informação ou asserção que distorce deliberadamente a verdade, ou algo real, caracterizada pelo forte apelo à emoção, e que, tomando como base crenças difundidas, em detrimento de fatos apurados, tende a ser aceita como verdadeira, influenciando a opinião pública e comportamentos sociais” (ABL, 2022). Desta forma, é possível perceber como não há mais espaço para análises fundamentadas na razão e na ciência sobre o que é real, mas a verdade passa a ser a narrativa que mais convém, de acordo com o interesse do grupo dominante.

É sobre isso que se debruça a explicar o filósofo Michel Foucault (1926-1984), sobre a relação existente entre os discursos dominantes e as práticas discursivas, a que ele denomina “saber-poder”. Para Foucault, existe uma correlação entre a produção de conhecimento, tida como a própria prática discursiva, e os discursos dominantes. Para ele, existem diferentes tipos de discursos (narrativas), concebidos como verdades, que criam identidades, definem ações e constituem objetos, que controlam os horizontes do conhecimento humano (RESENDE, 2010).

O referido filósofo diz que a verdade não existe fora do poder ou sem ele. Ela pertence ao mundo e é produzida nele graças a múltiplas coerções, que geram efeitos regulamentados pelo poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade, isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, os mecanismos e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros, as técnicas e procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade e o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT, 1979: 12).

Neste sentido, a relação saber-poder se estabelece a partir do pressuposto de quem exerce mais poder e possui dominância sobre a prática de produzir narrativas que sejam dadas como verdade irrefutável. Para ilustrar, podemos pegar como exemplo as fake news que o presidente difundiu acerca do “kit covid” durante a pandemia, que basicamente atestava à população que os medicamentos contidos nele seriam eficientes no combate ao coronavírus. Isso fez com que milhares de pessoas comprassem indiscriminadamente os remédios, sem eficácia comprovada, e os utilizassem sob risco à saúde. Não obstante, a recusa do presidente em aceitar a eficiência das vacinas, também influenciou outras milhares de pessoas a não se vacinarem, e consequentemente, a assumirem risco de vida e maior disseminação do vírus.

Se existe algo tão poderoso quanto o conhecimento, é a desinformação ou a informação manipulada. Nesta lógica, com o período eleitoral de 2022 se aproximando, estas notícias falsas acerca das eleições ganham o poder de influenciar de forma contundente o futuro do país. E sobre isso, as mídias sociais possuem grande responsabilidade. São elas as principais ferramentas de conexão entre as pessoas e, por isso, a agilidade e a facilidade com que se pode difundir uma ideia nesse lócus coloca em pauta o seu lado nocivo: a possibilidade de fortalecer e reafirmar narrativas perigosas. Portanto, verdades produzidas que procuram manipular conhecimentos, entendimentos, percepções e ideologias.

O que podemos fazer, quanto a isso é esforçar-nos ao máximo na busca pela verdade, aguçando o senso crítico, não compartilhando informações sem comprovação científica, desconfiando, questionando e resistindo. Parafraseando Rousseau (2011, p. 154), devemos sempre examinar os estabelecimentos humanos por seus princípios, corrigir as falsas ideias dos autores interesseiros e não deixar que a injustiça e a violência tomem o nome de direito e de equidade.

Referências:

FOUCAULT, Michel . Microfísica do poder. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989

LE BON, G. (1954). Psicologia das multidões. Rio de Janeiro: F. Briguet & Cia. (Original publicado em 1895)

Porque a urna eletrônica é segura. Escola Judiciária Eleitoral. Disponível em: <https://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/publicacoes/revistas-da.-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-6-ano-4/por-que-a-urna-eletronica-e-segura>. Acesso em: 14.08.22

Pós-verdade. Academia Brasileira de Letras. Disponível em: https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/pos-verdade>. Acesso em: 14.08.22

TAJFEL, H., & TURNER, J. C. (1979). An integrative theory of intergroup conflict. In W. G. Austin & S. Worchel (Eds.). The social psychology of intergroup relations. Monterey, CA: Brooks/Cole, 33-47.