
Keity Oliveira e Lorena Carneiro – Acadêmicas do 4º semestre de Relações Internacionais
“Há uma guerra contra a natureza. Dom Phillips foi morto tentando avisá-los sobre isso”. Essa foi a manchete do jornal britânico The Guardian (2022), que amplamente acompanhou e divulgou o desaparecimento e morte de Dom Phillips e Bruno Pereira, na Amazônia, no último mês de junho. Escancarou-se, mais uma vez, para o mundo o perigo que é defender o meio ambiente no Brasil.
Em levantamento feito pela GLOBAL WITNESS (2021), só em 2020 foram mortos mais de 200 defensores ambientais, número que pode ser maior, já que alguns casos não são notificados. Cerca de 70% desse total são de pessoas que, em algum lugar do mundo, defendiam as florestas contra o desmatamento e o desenvolvimento industrial desenfreado. No Brasil e no Peru, por exemplo, ¾ dos ataques foram registrados na região amazônica de cada país e são relacionados à exploração ilegal de recursos, como madeira e minérios, sendo aquela a mais correlacionada aos crimes. Muitas empresas desenvolvem seu modelo econômico em detrimento aos direitos humanos e ao meio ambiente. Criou-se um poder corporativo cruel e irresponsável, que mata a natureza e pessoas sem se preocupar com as consequências dos seus crimes.
Em primeira instância, Wright Mills (2000) discorre sobre a imaginação sociológica, uma forma de exercitar a consciência para a compreensão de transformações e conflitos da sociedade. Para o autor, esse imaginário trata de perceber como a experiência individual se relaciona com a história e, por consequência, como biografia e história se tornam conectadas dentro de uma comunidade. Por conseguinte, segundo VASCONCELLOS (2019), no imaginário sobre a Amazônia, os conflitos são desarticulados para frisar uma visão de um bioma belo, grandioso e intocável e sem um olhar que desnaturalize esses conflitos, sendo eles interpretados como fatos isolados, tragédias pessoais ou exceção à regra.
Dessa forma, apesar dos números alarmantes sobre os assassinatos de pessoas que lutam na linha de frente para a defesa da floresta e das comunidades amazônicas, há de forma simultânea um silenciamento sobre as injustiças praticadas. O assassinato de ativistas ambientais na Amazônia é presente na memória histórica das lutas pela defesa da terra e da floresta, onde nomes como Chico Mendes e Dorothy Stang, são reconhecidos internacionalmente pelos fatos ocorridos, tornando o Brasil como um dos países que mais mata ambientalistas e defensores dos direitos humanos (BRITO, 2020).
Como um dos grandes nomes no ativismo ambiental, destaca-se Chico Mendes, um dentre os principais líderes ambientalistas no Brasil, que foi assassinado aos 44 anos, em 1988, no estado do Acre. Sua morte foi uma reação à sua luta e militância como sindicalista pelos direitos dos seringueiros e pelos povos indígenas da Amazônia (ALLEGRETTI, 2008). Além dele, outra importante personalidade é a missionária Dorothy Stang, que atuou durante quarenta anos no Brasil, na região amazônica, na luta pela reforma agrária. Foi assassinada por latifundiários que encomendaram sua morte, em 2005, aos 73 anos. As duas mortes, assim como outras que ocorreram ao longo dos anos, mostram os problemas estruturais da formação e ocupação no campo, alertando para o agravamento e silêncio em torno da violência presente (OLIVEIRA LISBOA & BRANCO, 2022).
Em junho deste ano, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips, foram encontrados mortos na região amazônica do Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do país (G1, 2022). Dom trabalhava com jornalismo investigativo, modalidade que se caracteriza pela tentativa de descoberta de fatos ocultos, como por exemplo, envolvimentos com a prática de crimes, corrupção de autoridades e servidores públicos e faltas administrativas graves. Bruno era um servidor licenciado da Funai, exercendo atribuições de consultor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (FREITAS, 2022).
O trabalho feito pela dupla era considerado de elevado risco, pois envolvia a procura de provas contra a criminalidade na região, que é cenário para o crime organizado: tráfico de drogas, roubo de madeiras, pescaria e avanço da atividade garimpeira ilegais. Em 15 de junho, os restos mortais de Pereira e Phillips foram encontrados, onde se descobriu que eles foram mortos a tiros e tiveram seus corpos queimados e enterrados.
Apesar de a polícia ter prendido, um mês após o crime, três suspeitos pelo envolvimento no duplo homicídio, ainda há questionamentos acerca da eventual existência de um mandante e da motivação do crime. O caso gerou ampla repercussão nacional e internacional, assim como críticas negativas ao governo federal, que por sua vez não adotou medidas de buscas suficientes e ao presidente Jair Bolsonaro, por minimizar o desaparecimento, afirmando que ambos eram “imprudentes” (GABRIEL, 2022).
Nesse seguimento, o Observatório do Clima defendeu que o assassinato de Dom e Bruno tem “a digital da necropolítica brasileira”, lembrando das tragédias envolvendo ativistas ambientais (2022). Sobre isso, destaca-se o ensaio do filósofo, teórico político e historiador camaronês Achille Mbembe, que cunhou o conceito de necropolítica. Nele, o autor determina o pressuposto de que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Dessa forma há “a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações” (2018, p. 10).
Em síntese, MBEMBE (2018) discorre que dentro do sistema internacional contemporâneo há diversas estruturas que possuem objetivo de provocar a destruição de determinados grupos, sujeitos ao poder da morte, onde dentro de um Estado, existe o poderio de ditar quem poderia viver e quem deveria morrer. Segundo o autor, esse poderio seria realizado com base em valores considerados morais e culturais, obstinados ao extermínio da diferença.
Nessa perspectiva, ao se analisar a morte de Dom e Bruno, assim como as mortes de outros ativistas ambientais no Brasil, e a conceituação de necropolítica do autor, pode-se concluir que os assassinatos estão diretamente ligados ao crime organizado que domina na Amazônia, sob o aval do próprio governo federal, que financia atividades como a grilagem, o garimpo ilegal e o agronegócio, que cada vez mais aumentam seu poder e sua atuação na região, eliminando as pessoas que cruzam seus caminhos.
Em segunda instância, o Brasil tem enfrentado durante décadas, as consequências da presença do crime organizado transnacional e o tráfico de drogas pelo seu território. A presença do narcotráfico, por exemplo, tem conseguido se consolidar desde os anos 1980, por meio de uma territorialização em redes, que parte de conexões regionais, nacionais e globais da economia do crime, abrangendo territorialidades que vão além de suas fronteiras, utilizando-se de elementos e locais estratégicos do Estado, como a região amazônica para a perpetuação da atividade criminosa, configurando relações de poder que se sobressaem ao poder do Estado brasileiro (COUTO, 2019).
Nesse viés, a Amazônia tornou-se uma região estratégica para o crime organizado por ser um território com matas densas, fechadas, de difícil acesso e por ser uma das maiores redes fluviais do mundo, com ambientes permeáveis e favoráveis para as práticas criminais (COUTO, 2019). O fortalecimento da rede de crimes também ocorre com a participação de outros países como as Guianas, o Suriname e a Comunidade Andina (Colômbia, Peru e Bolívia), que transformam a bacia amazônica em rota de escoamento de drogas para o mercado interno, assim como patrocinam e investem em aparato necessário para o garimpo ilegal (CLEMENT ET AL, 2022).
A precariedade da atuação do Estado permite a inserção da região no contexto regional-global do narcotráfico e de outras atividades criminosas como a grilagem, o garimpo e a extração irregular de madeira, além de demonstrarem a fragilidade de instituições voltadas para a proteção ambiental. O Ibama e o ICMBio sofrem com a redução de suas verbas, carecendo de recursos que poderiam ser eficientes para frear essas atividades, assim como a Polícia Civil, que raramente dispõem de recursos ou delegacias aparelhadas e bem servidas de instrumentos eletrônicos indispensáveis para esse tipo de investigação, sofrendo por vezes, influência política dos governos estaduais e federal (COUTO, 2020).
Outrossim, ao longo do governo de Jair Bolsonaro, os setores clandestinos da economia, como garimpeiros, madeireiros e grileiros, sentiram-se autônomos com a conivência do Estado em livrá-los dos empecilhos causados pela fiscalização de órgãos ambientais, aumentando a escalada de destruição no território amazônico (ROMANO, 2022). Para o professor e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Aiala Couto, “O desenho atual para a região amazônica é um desenho neoliberal na sua essência. É uma ideia de projeto civilizatório que se dá mediante à ideia de modernidade.” (PAJOLLA, 2022).
Ademais, Couto aponta que o avanço de atividades de caráter predatório sobre populações indígenas e ribeirinhas é legitimado por um modelo de desenvolvimento que vislumbra áreas protegidas como fontes de lucro inexploradas. Por conseguinte, esse projeto é, inclusive, necropolítico, que atinge não somente os povos da floresta, mas também a própria floresta e seus defensores ambientais (PAJOLLA, 2022).
A devastação ambiental e os crimes cometidos contra aqueles que tentam freá-la tornaram-se mais evidentes nos últimos quatro anos. A retórica bolsonarista, cheia de racismo e preconceito, propaga a destruição da floresta para abrir caminho para o agronegócio e mineração, flexibilizando a legislação ambiental e provocando o desmonte dos órgãos fiscalizatórios, legitimando, assim, a impunidade.
Diante da temática exposta, destaca-se o trabalho feito pela Human Rights Watch, uma organização internacional não governamental que defende e realiza pesquisas sobre os direitos humanos. Sua sede se localiza na cidade de Nova York e a organização mantém escritórios em diversos países, no qual um deles é o Brasil, em São Paulo. A HRW age por meio da criação de relatórios sobre violações aos direitos humanos, com objetivo de chamar atenção da comunidade global para abusos existentes. Recomenda-se a leitura de um de seus relatórios, intitulado “Máfias do Ipê – Como a Violência e a Impunidade Impulsionam o Desmatamento na Amazônia Brasileira.”
Link do Relatório: < https://www.hrw.org/pt/report/2019/09/17/333519 >
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Site Oficial: < https://www.hrw.org/ >
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Ademais, recomenda-se a leitura da obra “Chico Mendes – Crime e castigo” (2003) que reúne reportagens escritas por Zuenir Ventura a respeito do maior líder ambientalista do Brasil e seu assassinato. Também se recomenda a leitura do livro “Martyr of The Amazon: The Life of Sister Dorothy Stang” (2014) que discorre sobre a vida e o assassinato de Dorothy Stang, ocorrido em 2005 no Brasil. A missionária trabalhou no Brasil durante quarenta anos e foi uma figura importante na luta contra os conflitos relacionados à posse e à exploração da terra.
Outrossim, destaca-se o trabalho feito pelo Instituto Chico Mendes, uma organização não governamental, que desenvolve programas, ações e projetos buscando a conservação dos recursos naturais para a melhoria da qualidade de vida dessa e das futuras gerações. Fundada em 2004, o Instituto também desenvolve ações que contribuem para a proteção ambiental, promoção humana e inclusão social, por intermédio de geração de renda, difusão de técnicas e conhecimentos, eventos, pesquisas e projetos de ação social.
Para mais informações, acesse:
Site Oficial: < https://institutochicomendes.org.br/ >
Instagram: < https://www.instagram.com/institutochicomendes.oficial/ >
Facebook: < https://www.facebook.com/institutochicomendes >
Por fim, destaca-se a Comissão Pastoral da Terra (CPT), um órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, fundado em plena ditadura militar em resposta a grave situação vivida pelos trabalhadores rurais na Amazônia, na época. Apoiam e fazem assessoramento à trabalhadores na reivindicação de seus direitos para garantir o acesso à terra e a permanência nela de maneira sustentável e equilibrada com os recursos naturais.
Para mais informações, acesse:
Site Oficial: < https://www.cptnacional.org.br/ >
Instagram: < https://www.instagram.com/cptnacional/ >
Facebook: < https://www.facebook.com/CPTNacional >
REFERÊNCIAS
ALLEGRETTI, Mary. A construção social de políticas públicas. Chico Mendes e o movimento dos seringueiros. Desenvolvimento e meio ambiente, v. 18, 2008. Disponível em: < https://revistas.ufpr.br/made/article/view/13423 > Acesso em: 26 de julho de 2022.
BRITO, José. Brasil é o 3º em mortes de ativistas ambientais e dos direitos humanos, diz ONG. CNN Brasil. Publicado em: 28 de julho de 2020. Disponível em: < https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-e-o-3-em-mortes-de-ativistas-ambientais-e-dos-direitos-humanos-diz-ong/ > Acesso em: 28 de julho de 2022.
COUTO, Aiala Colares. Conectividade e territórios em rede do narcotráfico na Amazônia brasileira. GeoTextos, 2019. Disponível em: < https://periodicos.ufba.br/index.php/geotextos/article/view/33820 > Acesso em: 28 de julho de 2022.
COUTO, Aiala Colares. Ameaça e caráter transnacional do narcotráfico na Amazônia brasileira. Confins. Revista franco-brasileira de geografia, n. 44, 2020. Disponível em: < https://journals.openedition.org/confins/25852 > Acesso em: 28 de julho de 2022.
CLEMENT, Charles R. et al. Desenvolvimento amazônico sequestrado pelo crime organizado. ((o))eco, 2022. Disponível em: < https://www.researchgate.net/profile/Philip-Fearnside/publication/360951545_Desenvolvimento_amazonico_sequestrado_pelo_crime_organizado/links/62952c04431d5a71e76de618/Desenvolvimento-amazonico-sequestrado-pelo-crime-organizado.pdf > Acesso em: 28 de julho de 2022.
FREITAS, Vladimir Passos de. A morte de Dom e Bruno, o crime organizado e a perda de território. Consultório Jurídico. Publicado em: 19 de junho de 2022. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2022-jun-19/segunda-leitura-morte-dom-bruno-crime-organizado-territorio > Acesso em: 28 de julho de 2022.
GABRIEL, João. Governo Bolsonaro é cobrado por omissão e minimiza desaparecimento enquanto anuncia ações. Folha de S. Paulo. Publicado em: 07 de junho de 2022. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/06/governo-bolsonaro-e-cobrado-por-omissao-e-minimiza-desaparecimento-enquanto-anuncia-acoes.shtml > Acesso em: 28 de julho de 2022.
G1 Amazonas – Um mês das mortes de Bruno e Dom: veja o que se sabe e o que falta esclarecer. Publicado em: 05 de julho de 2022. Disponível em: < https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/07/05/um-mes-das-mortes-de-bruno-e-dom-veja-o-que-se-sabe-e-o-que-falta-esclarecer.ghtml > Acesso em: 28 de julho de 2022.
GLOBAL WITNESS. Última linha de defesa. Publicado em 13 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-activists/last-line-defence/. Acesso em 29 de julho de 2022.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 80 p. 2018. Acesso em: 26 de julho de 2022.
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