Keity Oliveira- Acadêmica do 4º semestre de Relações Internacionais da Unama.

No dia 24 de julho, o Papa Francisco deixou Roma em direção ao Canadá, em uma viagem penitencial de cinco dias para pedir perdão aos sobreviventes indígenas dos abusos cometidos em internatos administrados pela Igreja Católica no país. A visitação representou um passo inicial para o processo de reconciliação com as crianças indígenas que foram separadas de suas famílias e submetidas a políticas de assimilação cultural e para reconhecer o papel que a instituição religiosa teve durante os anos de funcionamento dos internatos. Neste seguimento, cabe-se analisar a visita histórica com a abordagem teórica construtivista das Relações Internacionais. 

Em uma primeira análise, no final do século XIX, entre os anos de 1863 a 1998, mais de 150 mil crianças foram separadas de suas famílias e levadas a internatos no Canadá, que funcionavam como um sistema de escolas residenciais administradas pelo governo canadense e, em sua maioria, operados pela Igreja Católica, que faziam parte da política de assimilação cultural das crianças indígenas (BBC Brasil, 2021). Segundo Truzzi (2012), a assimilação cultural ou social é o processo pelo qual uma determinada pessoa ou grupos de pessoas, absorveriam as características e elementos culturais de outra civilização, eliminando seus traços culturais próprios. No caso da política exercida pela Igreja Católica, as crianças eram proibidas de falarem suas próprias línguas e de praticarem suas crenças, sendo forçadas a se converterem para o cristianismo. 

Em 2015, o Centro Nacional para Verdade e Reconciliação, criado por meio de um acordo entre o governo canadense e as comunidades indígenas, elaborou um relatório de 4 mil páginas que continha relatos e detalhes da situação vivida pelas crianças naquela época, no qual foi apontado que cerca de 6 mil crianças morreram enquanto estavam nos internatos, porém, ainda não há um panorama completo do número total de mortes (BBC Brasil, 2021). Seus corpos raramente voltavam para suas famílias e muitos foram enterrados em sepulturas sem nomes, o que ocasionou a descoberta de restos mortais de, ao menos, 215 crianças indígenas, em maio de 2021, na escola Kamloops, fato que causou indignação em todo o Canadá (BBC Brasil, 2021). 

Neste seguimento, o documento descreveu a política liderada pelo governo como “genocídio cultural”, no qual as medidas faziam parte de um plano coerente e elaborado para eliminar os aborígenes – indígenas – como povos diferentes e assimilá-los na cultura dominante e branca,  canadense contra sua vontade (BBC Brasil, 2021).

Por conseguinte, o relatório indicava que o governo desejava se livrar de suas obrigações legais e financeiras com os povos indígenas e obter o controle total de suas terras e recursos. Além disso, o trabalho feito pela comissão trouxe inúmeros relatos sobre os abusos físicos, psicológicos e até mesmo sexuais que as crianças sofriam, além da falta de acesso aos direitos mais básicos, sendo forçadas a viverem em alojamentos insalubres e precários. Em 2008, o governo canadense se desculpou formalmente pelas ações ocorridas contra os povos indígenas no país e, até aquele momento, a Igreja Católica não havia feito um pedido de desculpas formal até a visita do Papa Francisco, no dia 24 de junho deste ano. 

A visitação do Papa ocorreu nos locais de Alberta, Edmonton, Guebec e Iqaluit, e consistiu na visita do chefe religioso às populações indígenas das Primeiras Nações, Métis e Inuítes, no qual ele convidou os sobreviventes dos internos para assistirem seus discursos e seguiu a peregrinação para a celebração de uma missa (Correio Braziliense, 2022). 

Em suas falas, Francisco criticou a “mentalidade colonialista” do passado, acrescentando que ainda hoje, existem diversas formas de colonização ideológica que se chocam com a realidade da vida e que possibilitam o apagamento da história, dos valores, tradições e da ancestralidade indígena, assim como, defendeu o multiculturalismo, comprometendo-se a promover os direitos dos povos tradicionais e se desculpou pela forma como a Igreja Católica tratou essas crianças. (Estado de Minas, 2022). 

Em uma segunda análise, o Construtivismo é uma das abordagens teóricas no campo das Relações Internacionais, a qual, diz que o mundo material é formado pela ação e pela interação humana, ou seja, depende de interações normativas e epistêmicas. Dessa maneira, a teoria construtivista se interessa em entender de que forma os mundos material, subjetivo e intersubjetivo interagem na construção social da realidade, formando assim, a sua premissa básica de que a vida é socialmente construída e, portanto, é produto de ideias, concepções, relações, escolhas e ações (Nogueira e Messari, 2005). 

Outrossim, o Construtivismo busca explicar a relação entre agente-estrutura, que, em conjunto, moldam as identidades, os comportamentos e os interesses dos agentes individuais, através de interpretações, significados e pressupostos coletivos sobre o mundo (Adler, 1999). Para o teórico construtivista Emanuel Adler, tudo aquilo que é inerente ao mundo social dos indivíduos é elaborado por eles mesmos, constituindo um domínio intersubjetivo, isto é, possui significado para as pessoas que o organizam e vivem nele (Jackson e Sorensen, 2007). 

Nessa perspectiva, ao se analisar a teoria construtivista e a peregrinação penitencial do Papa Francisco ao Canadá, é possível perceber que o ato de pedir perdão aos indígenas sobreviventes dos abusos cometidos nos internatos, os quais eram 70% administrados pela Igreja Católica, é um passo inicial importante para o reconhecimento do papel da instituição religiosa e a “colonização ideológica” praticada pela mesma.

Sob o viés analítico do Construtivismo, observa-se que o mundo social é arquitetado principalmente por ideias, estando em constante mudança e passível de transformações e, mesmo que ainda aja um longo caminho a ser percorrido, a visita histórica representa a possibilidade de construção de diálogos entre o chefe religioso e as comunidades indígenas, representando uma visita para a reconciliação e para a prática de ações concretas que não permitam novamente a ocorrência desse capítulo e que não deixem de lado, o doloroso legado que as escolas residenciais deixaram. 

Portanto, a visita penitencial do Papa Francisco ao Canadá e o seu ato de pedir perdão aos povos indígenas que sofreram com as políticas de assimilação cultural, representou um ponto de chegada para o reconhecimento da verdade do papel da Igreja Católica em um ato de colonialismo ideológico com as comunidades tradicionais. Assim, como o Construtivismo é moldado pelas ações e ideias de agentes individuais, num processo contínuo de mudanças e transformações, a visitação do Papa simboliza a continuidade de um projeto de paz social que, mantendo viva e presente a memória da dor sofrida pelos povos indígenas, resgata a demora do passado e da instituição religiosa em reconhecer as feridas causadas aos primeiros habitantes que formam o atual território do Canadá. 

REFERÊNCIAS

ADLER, Emanuel. O Construtivismo no Estudo das Relações Internacionais. IN: Lua Nova. Revista de Cultura e Política. Número 47. São Paulo: CEDEC, 1999. Acesso em: 29 de julho de 2022.

 BBC Brasil – Os chocantes relatos sobre internatos onde morreram 6 mil crianças indígenas no Canadá. Publicado em: 07 de junho de 2021. Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57379972 > Acesso em: 29 de julho de 2022. 

Correio Braziliense – Papa Francisco inicia ‘peregrinação penitencial’ no Canadá por abusos da Igreja. Publicado em: 24 de julho de 2022. Disponível em: < https://www.correiobraziliense.com.br/mundo/2022/07/5024340-papa-francisco-inicia-peregrinacao-penitencial-no-canada-por-abusos-da-igreja.html > Acesso em: 29 de julho de 2022. 

Estado de Minas – Papa denuncia ‘colonização ideológica’ em visita ao Canadá. Publicado em: 27 de julho de 2022. Disponível em: < https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2022/07/27/interna_internacional,1383046/papa-denuncia-colonizacao-ideologica-em-visita-ao-canada.shtml > Acesso em: 29 de julho de 2022. 

JACKSON, Robert & SORENSEN, Georg. Introdução às Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2007. Acesso em: 29 de julho de 2022. 

NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. Acesso em: 29 de julho de 2022. 

TRUZZI, Oswaldo. Assimilação ressignificada: novas interpretações de um velho conceito. Dados, v. 55, p. 517-553, 2012. Disponível em: < https://www.scielo.br/j/dados/a/zf4QYgMXCx4494SfGQqhHQs/?lang=pt > Acesso em: 29 de julho de 2022.