Jorge Malheiros – internacionalista graduado pela UNAMA

A modernidade no ocidente veio acompanhada de fortes transformações para o modelo do Estado e marcando a sociedade com intensas mudanças. A evolução histórica do modelo estatal proporcionou a elaboração de discursos de caráter questionáveis, o que fica claro nos casos de abusos de forças como politica de segurança. 

É relevante mencionar a transformação pela qual o conceito de “poder” passa, comumente relacionado à força bruta e capacidades materiais. Porém, Foucault (2014) traz um novo olhar para o conceito a partir das modificações das relações de poder, sendo compreendido como algo que se exerce sobre o outro. Essa visão é importante para a conceituação de biopolítica, podendo ser compreendido como ferramentas governamentais que abrangem a vida através da gestão do poder, ou seja, a vida se tornou guiada pelo controle do Estado, esse âmbito é o que Foucault chama de biopoder, sendo controlado por instituições estatais disciplinares como presídios, escolas, etc.

Sendo assim, não é necessário pensar muito para saber que este modelo de poder institucionalizado e normatizado de violências se agrava em um contexto de neoliberalismo e a lógica do capital, os quais mercantilizam a vida em favor do lucro, segregando as vidas e as categorizando entre as que merecem viver e as que não merecem. Porém, é curioso perceber que a morte não vem apenas da força bruta normatizada, mas da negligência sistemática do Estado.

            Deste modo, o autor Achille Mbembe (2018) inicia um debate acerca da chamada necropolítica, questionando-nos sobre o papel da vida humana dentro do campo de guerra que é a política. Portanto, a vida se torna uma variável no campo político. Contudo, para que a morte seja normatizada, ou seja, para que seja criada uma ordem de padronização inquestionável de morte de uma parcela vulnerável da sociedade, é necessário que um discurso a preceda. Dessa forma, é comum surgir a ideia de um inimigo, além de dividir as espécies e dar espaço para o racismo institucionalizado, ou seja, é institucionalizada a ameaça irreal que a vida de um inimigo ficcional supostamente causa a uma maioria que exerce poder. Como a exemplo a demonização que os nazistas atribuíram para os judeus.  Surge, então, a necropolítica como elaboração do Estado, surgindo como aquela que escolhe quem vive e quem morre.

Fazendo um recorte de uma das facetas da necropolítica, a fome é tida como uma das mais tristes. De acordo com a pesquisa realizada durante o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN)

O país soma atualmente cerca de 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer diariamente, são14 milhões de pessoas a mais passando fomeno país. A partir da pesquisa da rede PENSSAM divulgada em junho de 2022, percebe-se que 125,2 milhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar. É importante ressaltar que a fome é mais presente entre as famílias que vivem no Norte (25,7%) e no Nordeste (21%), além de ser maior em áreas rurais, onde atinge 18,6% dos domicílios. E saltou de 10,4% em 2020 para 18,1% em 2022 entre os lares comandados por pretos e pardos.

O cenário da fome no Brasil foi agravado durante o período de pandemia, o desmonte de políticas públicas e cenário econômico em crise afetaram as desigualdades sociais exponencialmente a partir de 2020. A necropolítica mostra sua face na politica brasileira quando o governo não mostrou seu plano de ação para enfrentar a pandemia, não incentivou as pesquisas científicas para uma vacina e quando persistiu no negacionismo de uma realidade comprovada cientificamente.

A fome é uma problemática de um sistema político que negligencia suas próprias falhas, tornando vidas em números. Para a necropolítica, a fome é apenas uma de suas faces, que foi agravada em contexto de lógica de mercado e de pandemia. Contudo, é necessário o pensamento crítico para se questionar sobre os discursos que a necropolítica desenvolve para a normatização das violências, pensando em quem pratica essa violência e quem a sofre.

REFERÊNCIAS

O que é necropolítica. E como se aplica à segurança pública no Brasil (entrevista com Rosane Borges) – Mariana Ferrari, 2019. Disponível em < https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/ >

Da biopolítica à necropolítica contra os povos indígenas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) – Rodrigo Alvarenga e Elston Américo Junior. 2019

MBEMBE, Achille. . Necropolítica . 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Leya, 2014.