
Era 1933 quando, sob o controle de Adolf Hitler, o regime nazista se estabeleceu na Alemanha, transformando-a em um estado totalitário e determinando as novas diretrizes sob as quais o país passaria a ser regido. Dentro desta ordem, todas as pessoas que não se encaixavam no padrão ariano desenhado pelo regime tiveram suas vidas, seus direitos e dignidade ceifados, das formas mais cruéis possíveis.
Os campos de concentração nada mais eram que locais específicos para onde eram levadas todas as pessoas consideradas opositoras do regime nazista, isto é, que divergiam do ponto de vista ideológico, religioso e racial alemão. Mas, apesar do marco histórico destes eventos, o nazismo não nasceu no governo de Hitler, assim como o fascismo não teve origem no governo de Mussolini. Antes estes sistemas políticos foram formados por um conjunto de condutas e ideologias já compartilhadas pelo inconsciente coletivo de muitas sociedades. Isto é, os conservadorismos, o desprezo pelo diferente, a intolerância, a violência e o preconceito são condutas que já coexistiam no meio social desde sempre.
Sobre regimes como este, é importante destacar as principais particularidades que os caracterizam: a) a centralização dos processos de tomada de decisão, isto é, a concentração de poder nas mãos de um ou de poucos; b) censura dos meios de comunicação e repressão política e ideológica; c) culto à personalidade de um líder; d) intensa propaganda estatal e incentivo ao patriotismo/nacionalismo; e) valorização extrema do militarismo e militarização da sociedade; f) conservadorismos e autoritarismos; e g) contextos de crise.
Quando comparadas ao contexto sócio-político contemporâneo, tais características soam bem familiares, principalmente diante do cenário mundial vivido, no mínimo, nos últimos 4 anos. Com isso, é possível pensar no Brasil como um claro exemplo prático, mas não se limitar a ele, afinal, sem dúvida ainda se vive um certo paradigma nazifascista em nível global.
A partir da década de 70 a 80, talvez em reparação a estes contextos pós-guerras, cresceram no mundo valores relacionados aos direitos humanos que, de alguma forma, inibiram a expressividade do aparecimento de figuras com esse perfil totalitarista. Nos últimos anos, entretanto, é possível perceber como, a partir de uma série de crises políticas, institucionais e culturais, têm se intensificado no mundo um movimento de emergência de novas formas de lideranças e governos autoritários e consequentemente retorno a este panorama extremista – o que tem reaberto as discussões, acerca do assunto.
Considerando que a área da Psicologia é um campo cujas ferramentas teóricas e metodológicas têm estado cada vez mais próximas, presentes e relevantes às abordagens realizadas pelas Relações Internacionais, é possível perceber que o fator ideológico, comportamental e subjetivo está cada vez mais relacionado às fundamentações que levam à compreensão da dimensão central do pensamento conservador, autoritário, neofascista e extremista, valores que têm (re)emergido nos últimos anos.
Conforme expõe Salztrager (2011), devido a relativa decadência das instituições tradicionais, determinados fenômenos de massa emergiram, e acabaram se tornando uma alternativa à crise das instituições, servindo, portanto, como uma outra opção de vínculo social (SALZTRAGER, 2011, p. 182), daí a probabilidade do surgimento de movimentos nazifascistas, em forma de regime. No que consiste ao contexto contemporâneo, o professor, doutor e psicólogo, Domenico Uhng Hur, atribui ao regime neoliberal a responsabilidade pelo cenário atual de crises social e psíquica que levam a tais conservadorismos e extremismos.
Resgatando as ideias do filósofo e psicanalista francês, Félix Guattari, Hur considera que contextos de ruptura das tradições, crenças e valores são fomentados pelo capital a partir da intensificação do individualismo, do afrouxamento das relações sociais e coletivas, e do incentivo a um intenso antagonismo social, gerando crise, situação de desamparo, cenário de insegurança e incertezas que, segundo Jost et al (2003) é uma das motivações sócio-cognitivas pelas quais se dão os conservadorismos.
Hur (2020) explica que tais contextos de indeterminação e incertezas geram ambientes de ansiedade que, em excesso, levam a uma espécie de funcionamento de vigilância e estado de paranoia que, por sua vez, ocasionam uma perspectiva cognitiva dicotômica extremista que tende à negatividade. Ele explica ainda que isso tudo consiste em um mecanismo defensivo e, portanto, natural e condizente com a evolução humana que, associado a esse contexto sócio-político de novas ofertas de crenças, valores e discursos, proporcionam algum tipo de amparo psicossocial e afetivo, em alternativa ao caos e à indeterminação contextuais, “então o que vem ocorrendo é uma adesão extremista a determinados regimes de enunciados, quaisquer que sejam” (HUR, 2020).
Considerando que uma característica do fascismo é o não reconhecimento da diversidade humana, de forma que não aceita o diferente e coloca sempre como “inimigo” aquele a que se contrapõe, e que em pleno século XXI, as pessoas ainda sofrem com intolerância religiosa, violência por conta da sua sexualidade, preconceito sobre a sua cor, e censura sobre suas opiniões e expressões então, sem dúvida, isso revela como a sociedade vive em um grande campo de concentração global, sob o qual os seus direitos são ignorados e usurpados, porém sob outros meios.
Mediante as novas tecnologias de comunicação, de expressão e de poder hoje existentes, como as redes sociais e a internet, os movimentos extremistas, sejam eles sociais, culturais ou políticos, passam a extrapolar o ambiente físico do âmbito internacional, apoiando-se sob a intangibilidade da estrutura digital e indo além, atingindo a mente e a psique humana, com cada vez mais atos de intolerância, violência e desrespeito que, sob estes novos meios, têm-se até menos controle sobre, o que torna todo esse contexto ainda mais nocivo.
Nesta perspectiva, não apenas no âmbito epistêmico-metodológico, mas estrutural, é imprescindível refletir sobre a existência e resistência deste estado paradigmático a partir das suas motivações, das mais atuais às mais primitivas, e partindo do pressuposto de que não deve ser tolerável coexistirem modelos autoritários, totalitários e extremistas com valores relacionados aos direitos humanos, pelo grau de nocividade ao bem estar social e à ordem internacional.
No fim, acabamos caindo naquela ideia do paradoxo da intolerância de Karl Popper: devemos combater com intolerância a intolerância (ou neste caso os extremismos) se desejamos preservar e salvaguardar os direitos humanos e o bem estar social mundial. Neste sentido, enquanto houver democracia, precisamos utilizá-la com sabedoria. Seja no sentido representativo ou participativo, deve-se incentivar o pensamento e a atuação crítica, sempre questionando e opondo-se ao que se impõe com autoritarismo sobre a liberdade. Temos na mão a possibilidade, mas precisamos lutar pela realidade.
Referências:
HUR, Domenico U.; SABUCEDO, José M. (orgs). Psicologia dos extremismos políticos. Petrópolis: Vozes, 2020.
HUR, Domenico, SANDOVAL, Salvador. Psicologia Política da polarização e extremismos no Brasil: neoliberalismo, crise e neofascismos. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2020.
JOST, J. T., GLASER, J., KRUGLANSKI, A. W., & SULLOWAY, F. (2003a). Political conservatism as motivated social cognition. Psychological Bulletin, 129, 339–375.
SALZTRAGER, Ricardo. (2011b). Os fenômenos de massa e a servidão voluntária: um possível diálogo entre Freud e La Boétie. In: Adverbum (Campinas), v. VI, p. 177-185