Iago Braga
Graduando em Relações Internacionais
Conta uma fábula que a rã, tentando ser maior que o boi, inflou-se de tal modo que acabou explodindo. O conflito entre a Ucrânia e a Rússia demonstra, de certo modo, estar se encaminhando nessa direção. O desafio deste texto é tentar resumir a questão bélica na região sem vulgarizar esse cenário tão complexo e, logicamente, sem esgotar suas discussões. Para isso, é necessário relembrar dois fatores, a Doutrina de Contenção e o Euromaidan, e como eles se entrelaçaram até o ponto atual.
George Kennan, talvez o diplomata mais influente da Guerra Fria, desenvolveu durante sua carreira o conceito de “Contenção” que baseou a enorme expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) ao leste da Europa com o objetivo de conter a URSS, controlando seus países fronteiriços. Com a queda dos soviéticos na década de 90, logo a OTAN visualizou uma oportunidade para o pleno domínio do continente.i E é nesse momento que a Ucrânia se torna um ator de suma relevância.
A Ucrânia é um Estado que carrega um peso estratégico imenso, estando limítrofe à Rússia ao leste e sendo banhada pelo Mar Negro ao sul. Além disso, a população carrega uma destoante identidade nacional, onde parte se reconhece como ocidental e parte como russa. Seria um ótimo ambiente para a atuação dos atlanticistas e o foi.
O que convencionou-se chamar de Euromaidan (2013) foi um processo de transformação político-social ucraniano que teve como plano de fundo as disputas sobre a integração ao Ocidente ou à Rússia. Ao mesmo tempo, isso significava a possibilidade de adesão da Ucrânia à OTAN, isto é, a chegada da “Contenção” à fronteira russa.ii O resultado dessas convulsões sociais foi a anexação da Crimeia à Rússia (2014), no sul, e duas províncias autodeclaradas independentes na região do Donbass (Donetsk e Lugansk), ao leste.
Na política ucraniana, o legado do Euromaidan foi o crescimento vertiginoso de movimentos de extrema-direita, como partidos e milícias armadas fascistas apoiados pela OTAN que, juntamente ao Ministério do Interior de Kiev, atuavam na repressão e no combate aos separatistas do Donbass, notadamente o Svoboda, o Pravyi Sektor e o Batalhão de Azov, etc.iii
Do outro lado da guerra, a Rússia de Putin tenta manter sua esfera de influência como maneira de parar o avanço atlanticista sobre a sua periferia. Para Putin, caso os separatistas percam, um míssil norte-americano poderia ser instalado em sua fachada. Por isso o apoio às repúblicas de Donbass e o interesse na formação de um “Estado Tampão” fantoche na região, projeto já discutido no Kremlin tempos atrás.iv
Tudo isso foi dito não só para mostrar que a guerra não começou agora, mas também para evidenciar que, assim como disse o professor Héctor L. Saint-Pierre, “o conflito não é entre a Rússia e a Ucrânia, é entre a Rússia e a OTAN”.v
É necessário ainda apontar que, ao início das tensões mais recentes, as afirmações de que a Rússia invadiria a Ucrânia (repetidas todos os anos) eram acompanhadas de campanhas de terror que insuflavam o chauvinismo ucraniano e forçaram ainda mais o conflito no Donbass.vi Foi desse modo que a rã achou que poderia ter o mesmo tamanho que o boi.
A analogia com a fábula não é em vão, a desproporção do poderio bélico entre Ucrânia e Rússia é colossal, chegando a uma diferença de um gasto militar 10 vezes maior pela parte russa – “em geral, a Rússia simplesmente tem mais de tudo”.vii O que se assiste nos meios de comunicação é uma Ucrânia que resiste sozinha, apenas com o apoio de munições, armas e suprimentos da OTAN, além do cerco nos países aliados ao redor, o que não impediu a penetração relativamente fácil da campanha russa no território ucraniano.viii
A Rússia já avançou às portas de Kiev com a ajuda de três corredores militares – a fronteira com Belarus ao norte, a fronteira russa ao leste e o istmo com a Crimeia ao sul, porém encontrou uma dura resistência de civis mobilizados pelo atual presidente V. Zelensky.ix A real guerra, entre Rússia e a OTAN, parece se configurar apenas no campo econômico com as temerosas sanções, entretanto todo cuidado é pouco.x
As torcidas são para as negociações previstas para a cidade de Minsk, em Belarus, e que o conflito tenha a sua tão suada conclusão, respeitando acima de tudo o direito à autodeterminação dos povos. As movimentações dos atores deixam um ar de incerteza e medo de uma catástrofe. Pelo mundo, protestos gritam que a guerra não interessa a ninguém. Será mesmo? Mas isso é assunto para outro texto.
REFERÊNCIAS
i ANDERSON, P. A Política Externa Norte-Americana e seus teóricos. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 35-36, 107.
ii MEARSHEIMER, J. J. Why the Ukraine Crisis Is the West’s Fault: The Liberal Delusions That Provoked Putin. Foreign Affairs, September/October 2014. p. 1-4.
iii IPHR. Fighting Impunity in Eastern Ukraine: Violations of International Humanitarian Law and International Crimes in Eastern Ukraine. Report, October, 2015. Disponível em https://iphronline.org/wp-content/uploads/2016/05/Fighting-impunity-in-Eastern-Ukraine-October-2015.pdf. Acesso em 28 de fevereiro de 2022; SHEKHOVTSOV, A. Why Azov should not be designated a foreign terrorist organization. Disponível em https://www.atlanticcouncil.org/blogs/ukrainealert/why-azov-should-not-be-designated-a-foreign-terrorist-organization/. Acesso em 28 de fevereiro de 2022; COHEN, J. Ukraine’s neo-Nazi problem. Reuters, 19 de março de 2018. Disponível em https://www.reuters.com/article/us-cohen-ukraine-commentary-idUSKBN1GV2TY. Acesso em 28 de fevereiro de 2022; MILNE, S. Far from keeping the peace, Nato is a threat to it. The Guardian, 03 de setembro de 2014. Disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2014/sep/03/nato-peace-threat-ukraine-military-conflict. Acesso em 28 de fevereiro de 2022.
iv TAYLOR, A. ‘Novorossiya,’ the latest historical concept to worry about in Ukraine. The Washington Post, 18 de abril de 2014. Disponível em https://www.washingtonpost.com/news/worldviews/wp/2014/04/18/understanding-novorossiya-the-latest-historical-concept-to-get-worried-about-in-ukraine/. Acesso em 28 de fevereiro de 2022.
v SAINT-PIERRE, H. L. LIVE | Rússia se aproxima de Kiev: até onde vai o conflito contra Ucrânia? Entrevista concedida a Michele de Mello. Brasil de Fato, 25 de fevereiro de 2022. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2022/02/25/live-russia-se-aproxima-de-kiev-ate-onde-vai-o-conflito-contra-ucrania. Acesso em 28 de fevereiro de 2022.
vi MARIN, P. Por que os EUA disseram tantas vezes que a Rússia invadirá a Ucrânia? Revista Opera, 12 de fevereiro de 2022. Disponível em https://revistaopera.com.br/2022/02/12/por-que-os-eua-disseram-tantas-vezes-que-a-russia-invadira-a-ucrania/. Acesso em 28 de fevereiro de 2022.
vii DEWAN, A. Ukraine and Russia’s militaries are David and Goliath. Here’s how they compare. CNN, 25 de fevereiro de 2022. Disponível em https://edition.cnn.com/2022/02/25/europe/russia-ukraine-military-comparison-intl/index.html. Acesso em 28 de fevereiro de 2022.
viii ALJAZEERA. NATO to deploy thousands of commandos to nations near Ukraine. 25 de fevereiro de 2022. Disponível em https://www.aljazeera.com/news/2022/2/25/nato-allies-to-provide-more-weapons-to-ukraine-stoltenberg-says. Acesso em 28 de fevereiro de 2022.
ix KIRBY, J; GUYER, J. Putin’s invasion of Ukraine, explained. Europe is witnessing its first major war in decades. Vox, 28 de fevereiro de 2022. Disponível em https://www.vox.com/2022/2/23/22948534/russia-ukraine-war-putin-explosions-invasion-explained. Acesso em 22 de fevereiro de 2022.
x Ibidem.