Maria Carolina Regateiro – Internacionalista formada pela Universidade da Amazônia (UNAMA)
O pós-colonialismo, historicamente, faz referência ao período que veio depois da “descolonização”, no entanto, o prefixo “pós” não compreende uma ruptura com a época colonial, mas reforça a ideia da contínua tentativa de dominação sobre os povos do Sul Global até os dias de hoje (HALL, 2009). Os Estudos Pós-Coloniais, portanto, procuram contar a história do ponto de vista do colonizado, apresentando uma abordagem que se difere dos conceitos do Ocidente.
O conceito de “decolonial”, apesar de em partes semelhantes ao de “pós-colonial”, se difere em alguns pontos. Enquanto os pós-coloniais se aproximam dos estudos pós-modernos e pós-estruturalistas, os decoloniais buscam a emancipação de toda e qualquer forma de dominação, vista inclusive nos Estudos Subalternos. A utilização do termo “decolonial” em vez de “descolonial” é fruto das discussões do Grupo Modernidade/Colonialidade, fundado no final da década de 1990 por estudiosos da América Latina.
Neste sentido, o chamado “giro decolonial” na América Latina busca produzir uma releitura histórica dos processos de dominação, assumindo premissas que reforçam que o Sul Global, mesmo após o fim do colonialismo, ainda possuía vestígios da colonialidade (BALLESTRIN, 2013, p.105). O colonialismo vem do significado de terras novas e estabelecimento de uma colônia. Cashmore (2003) coloca o termo como uma junção de práticas relacionadas à depreciação e subjugação do colonizado a fim de alcançar a manutenção de um império. Já a colonialidade “é entendida como uma dimensão simbólica do colonialismo que mantém as relações de poder que se desprenderam da prática e dos discursos sustentados pelos colonizadores para manter a exploração dos povos colonizados.” (TONIAL, MAHEIRIE, GARCIA JR. 2017, p.19).
Ou seja, é possível dizer que a colonialidade está além do colonialismo pois funciona através de hierarquizações culturais, raciais e de gênero, possibilitando assim, a manutenção da dominância sobre os povos do Sul Global. O colonialismo pode ter um fim, por questões legais, mas a colonialidade se perpetua através do tempo e das práticas.
As estruturas coloniais durante o período da colonização brasileira, ao mesmo tempo que eram impostas e mantidas pela intimidação e poderio militar, também eram enraizadas pela construção de novas mentalidades de inferioridade e submissão.
O Estado do Grão-Pará e Maranhão, fundado em 1626 para ser uma província administrativa portuguesa – tendo em vista a grande extensão territorial brasileira – enfrentou dificuldades na região, e a maior delas, era a resistência dos povos indígenas aos colonizadores europeus (Chambouleyron, 2013). E o que antes era uma desvantagem para os colonizadores, hoje é o paraíso dos aliciadores e traficantes, que se utilizam do vasto território e com fraca fiscalização como rotas do tráfico humano.
No entanto, mesmo antes da exploração dos povos indígenas na Amazônia, o restante do Brasil já vivenciava outro fenômeno importante durante a fase de exploração colonial: o tráfico negreiro, que trouxe ao Brasil cerca de três milhões e meio de homens e mulheres pretas escravizadas. (COMPARATO, 2003, p.121). É possível dizer, portanto, que a exploração e o tráfico humano no Brasil estão fortemente ligados à matriz colonial e à escravidão.
Especialmente mulheres indígenas e africanas que eram traficadas e exploradas estavam sempre ligadas a uma tripla finalidade: mão de obra escrava, reprodução de novos escravos e objeto sexual de seus patrões (CHIAROTTI, 2002 apud MARQUES, 2018. p. 31). A hipersexualização e objetificação de mulheres pretas e pardas alimentaram ainda mais uma perspectiva histórica de exploração e violência.
O tráfico humano, apesar de se manter sendo um tema atual, na realidade, é uma questão histórica na humanidade.
O tráfico de pessoas e a sujeição de seres humanos como objetos de troca e de uso ocorreu em diversos contextos e culturas. A captura de mulheres para os haréns no mundo árabe, homens “bárbaros” para servir de gladiadores no império romano, homens e mulheres negros da África para trabalhar nas plantações das colônias europeias nas Américas, são exemplos de tempos e regiões diversas. Em comum essas histórias têm a desvalorização de seres humanos a partir de características raciais, de identidade nacional ou de gênero (TXAI, 2002, p. 25).
Segundo sites oficiais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico humano é a violação de direitos que ocupa a terceira posição entre os mais rentáveis do mundo, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e tráfico de armas e movimentando cerca de US$ 32 bilhões por ano no mundo.
Na Amazônia, esse crime apesar de ocorrer de forma silenciosa, é de conhecimento das autoridades, que na maioria das vezes encontram dificuldades de atuação principalmente pela subnotificação do crime, tendo em vista o fato de que muitas das vítimas, principalmente mulheres traficadas para exploração sexual, sentem vergonha de sua situação e de terem sido ludibriadas.
De acordo com o delegado Daniel Daher, chefe da Divisão de Repressão a Crimes Contra Direitos Humanos da Polícia Federal, muitas vítimas não denunciam por medo da exposição e das próprias organizações criminosas responsáveis pelo tráfico.
O tráfico humano se beneficia então da falta de informação de grupos mais vulneráveis, principalmente mulheres que estão buscando fugir de fatores externos, como a violência e a pobreza, através de uma busca por suas realizações pessoais que muitas vezes resultam em uma posterior exploração. Tais questões foram intensificadas pela pandemia da Covid-19, que aumentou a vulnerabilidade de certos grupos.
Aníbal Quijano, que cunhou o termo “colonialidade do poder”, a define como “a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial” (QUIJANO, 2005, p.117). A colonialidade do poder expressa a dominação baseada na exploração utilizando-se de categorias como a raça, que foi inventada pela modernidade para buscar legitimar a exploração e os abusos coloniais, que refletem em nossa realidade até os dias de hoje.
Sendo assim, é inevitável avaliar a atual situação da Amazônia quanto à dinâmica do tráfico humano sem se aprofundar nas circunstâncias que nossa sociedade foi construída, especialmente quando tratamos de um crime que era legalizado e normatizado há relativamente pouco tempo, e que tratava os corpos pretos e pardos apenas como produto para a lógica capitalista europeia.
Diante do abordado acima, Ballestrin (2013) aborda um pouco mais sobre o entendimento dos estudos decoloniais e sua importância para os povos do Sul Global.
A pesquisa produzida pelo ENAFRON (2014) sobre o tráfico de pessoas também é de suma importância para compreender a dinâmica do crime, assim como o de Hazel (2006) e (2008) que aparece como figura indispensável no aprofundamento de estudos sobre o tráfico humano, especialmente de mulheres, que são as principais vítimas, na Amazônia.
Por fim, destaca-se o papel da Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia (Sodireitos), uma organização civil sem fins lucrativos, que atua desde 2006 na luta pela defesa e garantia dos direitos sexuais e direitos migratórios na Amazônia, além do enfrentamento ao tráfico de pessoas na região. O trabalho da ONG pode ser encontrado disponibilizado nas seguintes redes sociais:
Instagram: https://instagram.com/ongsodireitos_?utm_medium=copy_link
Twitter: https://twitter.com/sodireitos_
REFERENCIAL TEÓRICO
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 11. Brasília, 2013.
ENAFRON. Diagnóstico sobre o Tráfico de Pessoas nas áreas de fronteira. SNJ, São Paulo, 2014.
CASHMORE, Elis. Dicionário de relações étnicas e raciais. Tradução: Dinah Kleve. São Paulo: Selo Negro, 2000.
CHAMBOULEYRON, R. Nasce a Amazônia. In: FIGUEIREDO, Luciano. História do Brasil para ocupados. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
CHIAROTTI, Susana. Trata de Mujeres: Conexiones y Desconexiones con Migración y Derechos Humanos. Conferencia Hemisférica sobre Migración Internacional: Derechos Humanos y Trata de Personas. Santiago de Chile, 2002.
COMPARATO, Flávio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2003.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
HAZEU, Marcel; FIGUEIREDO, Danielle Lima de. Migração e tráfico de seres humanos para Suriname & Holanda. Belém: Txai/Emaús, 2006.
HAZEU, Marcel (Coord.). Pesquisa trinacional sobre tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname: uma intervenção em rede. ONG Sodireitos, Belém, 2008.
MARQUES, Brenda Moreira. As rotas do Tráfico Internacional de Mulheres na Pan Amazônia no Século XXI: Olhares Feministas do Sul Global. Cadernos de Relações Internacionais – PUC RIO. Edição especial “Gênero e Sexualidade nas RI”. Vol. 1 Abril 2018.
OIT; WFF; OIM. Global estimates of modern slavery: Forced labour and forced marriage. Geneva, 2017. Disponível em: < encurtador.com.br/jtEI9 >
OLIVEIRA, Márcia Maria. Tráfico Internacional de Mulheres na Amazônia: Desafios e Perspectivas. Fazendo Gênero 9, Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. 2010. Disponível em: <encurtador.com.br/ghW34>
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A Colonialidade do saber, eurocentrismo e Ciências sociais. Buenos Aires. CLACSO. 2005.
TONIAL, F.; MAHEIRIE, K.; GARCIA JR., C. A resistência à colonialidade: definições e fronteiras. Revista de Psicologia da UNESP 16(1). São Paulo, 2017.
TXAI. Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil: Amazônia. Relatório de pesquisa/ TXAI, Movimento República de Emaús; Org. e coord. Marcel Hazeu. Belém, 2002.