Keity Oliveira – Acadêmica do 1º semestre de Relações Internacionais da UNAMA

O protagonismo de mulheres no Oriente Médio, onde o sexismo e o patriarcado estão enraizados, mostra uma desconstrução de narrativas tradicionais de gênero, especialmente entre as mulheres curdas. Os curdos são uma população que buscam alcançar a autonomia de sua região, o Curdistão, e são vítimas constantes de perseguições e ataques dos países onde estão divididos (Turquia, Iraque, Irã e Síria) por conta de sua cultura e de sua presença nesses países. Nesse sentido, as mulheres curdas, que sofrem com uma dupla discriminação por conta de sua nação e de seu gênero, atuam de forma constante na luta contra a opressão vivida dentro de uma sociedade patriarcal e desempenham um papel fundamental na luta pela liberdade do povo curdo.

No ano de 1978, um movimento estudantil de curdos formou o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) na Turquia. O objetivo do partido era a fundação de um Estado para a população, buscando sua independência e lutando militarmente contra o Estado Islâmico, junto com outras unidades militares como a YPJ (Unidades de Proteção das Mulheres), que surgiram mais tarde. Dentro da PKK, pelo menos 40% de seus integrantes são mulheres, desafiando o caráter patriarcal dentro da militarização como forma de resistência. A presença de mulheres em ambientes militares, que sempre costumam ser associados apenas a homens, impulsionou o debate sobre hierarquias e valores da sociedade curda, entre eles, o patriarcado e o sexismo (ÖCALAN, 2011).

Em 2011 é criado o YPJ, uma organização militar composta por mulheres curdas que possuem uma dupla função: a militar, que defende contra ataques de grupos terroristas e a social que está lincada à luta da libertação e emancipação feminina dentro de um sistema de desigualdade de gênero, além da busca de autonomia em seu território.

Na região de Rojava, onde a organização da YPJ atua, enfrenta-se uma disputa de seu território por parte do grupo terrorista denominado de Estado Islâmico (EI), que em suas investidas contra a região submetem mulheres a diferentes graus de controle e discriminação, onde elas têm seus corpos violados e são sujeitas a abusos e violências sexuais por parte destes.

A partir disso, o YPJ surge tendo uma importância fundamental no combate ao EI, e como afirma Pessuto (2017), se torna uma estrutura feminina própria, garantindo a proteção e segurança das mulheres curdas. As unidades YPJ e YPG (unidade masculina) atuaram de forma significativa na Guerra Civil instaurada na Síria, como por exemplo no Cerco de Kobane, em 2014 e no resgate de diversos civis durante uma operação militar contra o EI, na região de Raqqa, entre 2016 e 2017.

O conceito de “masculinidade hegemônica” cunhado pela socióloga Raewyn Connel (apud TICKNER, 2001), que identifica a dominação de diferentes normas e valores masculinos em instituições sociais para o mantimento de uma ordem patriarcal, exemplifica o distanciamento de mulheres dentro do sistema de guerras. A ideia tradicional de guerra é predominante associada e atribuída aos homens, excluindo e invisibilizando as mulheres nesse campo ao construir uma narrativa em torno da honra masculina.

De acordo com Gimenez (2020), essa narrativa foi construída com base nos papéis de gênero, tendo a masculinidade intimamente ligada ao militarismo (apud ENLOE, 2005). Nesse sentido, o envolvimento das mulheres curdas em guerras e conflitos muda essas narrativas tradicionais, rompendo e questionando tais estruturas dentro de uma sociedade sexista e sendo reconhecidas como plenas combatentes.

Dentro do Confederalismo Democrático (sistema de autogestão criado pelos curdos), existe-se a chamada “ciência das mulheres” ou Jineologî, um dos principais pilares que integram as estruturas políticas e sociais em Rojava. Segundo Assis (2019), um dos objetivos dela é a substituição da ótica do “macho dominante” em todas as esferas sociais, propondo alternativas não sexistas para mudanças em estruturas e paradigmas predominantemente masculinos. Ao traçar os caminhos percorridos por mulheres durante a história, a Jineologî incentiva a construção de espaços autônomos para a articulação de mulheres, apresentando uma ruptura nas dinâmicas de poder e gênero presentes.

Portanto, o engajamento das mulheres curdas representa um caminho através do qual é possível mudar a posição da mulher na sociedade, incluindo o próprio movimento de libertação curdo (DE MIRANDA, 2016, p. 13).

Seguindo os fatos expostos, é imprescindível destacar a importância do protagonismo das mulheres curdas na luta contra a opressão, assim como a ruptura das tradicionais narrativas de gênero na guerra, pautadas principalmente no âmbito masculino. Seja como combatentes que enfrentam ataques de grupos terroristas e buscam a autonomia de seu território, ou seja por serem construtoras de espaços dedicados a redefinir noções hegemônicas de feminilidade e masculinidade, as curdas continuam a quebrar barreiras e padrões de gênero, que sempre foram presentes nas sociedades do Oriente Médio.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Kamila de. Mulheres Curdas: a contribuição para um novo modelo de sociedade baseada na emancipação das mulheres. Relações Internacionais-Florianópolis, 2019.

DE MIRANDA, Sarah Siqueira. Por uma “dupla revolução”: movimento de mulheres curdas na luta contra a opressão étnica e de gênero. PINEB/UFBA, 2016.

ENLOE, Cynthia. What if patriarchy is “the big picture?”: An afterwood. Gender, conflict, and peacekeeping. Oxford: Rowman & Littlefield, 2005.

GIMENEZ, Letícia. Guerrilheiras curdas em Rojava: a luta armada das mulheres no território autônomo do pôr do sol.

ÖCALAN, Abdullah. Prison Writings II: The PKK and the Kurdish Question in the 21st Century. Londres: Transmedia Publishing, 2011. Kindle Edition.

PESSUTO, Kelen. Made in Kurdistan: Etnoficção, infância e resistência no cinema curdo de Bahman Ghobadi. 2017. 401 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

RIBEIRO, Maria Florencia Guarche. A trajetória do movimento de mulheres no noroeste do Curdistão: a institucionalização do confederalismo democrático e da jineologî, (1978-2018). 2019. TICKNER, Judith. Gendering world politics: issues and approaches in the post-Cold War era. Nova Iorque: Columbia University Press, 2001.