
Profa. Dra. Brenda Cardoso de Castro
No cenário da pandemia de COVID-19 algumas problemáticas ficaram ainda mais nítidas e chegaram a ganhar a atenção da Organização das Nações Unidas, tais como: a violência doméstica contra mulheres e crianças e o aumento de casos de feminicídio (LUND, M NICA e M NICA, 2020); a sobrecarga dos trabalhos de cuidados sobre mulheres, a centralidade do trabalho doméstico não remunerado para as sociedades, o desproporcional impacto da crise econômica em mulheres com filhos e em situação de pobreza (OXFAM, 2020); dos serviços executados predominantemente por mulheres negras especialmente na linha de frente do combate à pandemia, assim como a pandemia impactou especificamente grupos sociais já em situação de vulnerabilidade, como povos indígenas, a população negra e pessoas LGBT+ (FERREIRA e SILVA, 2020).
Há alguns anos, especialmente após o que algumas autoras e movimentos identificaram como uma “quarta onda feminista” emergiu, o dia 8 de março parece a cada ano ficar mais complexo a ser abordado. A tal onda que teria ganhado força no contexto do ciberativismo contribuiu para a difusão de uma perspectiva feminista muito específica, que rapidamente foi absorvida e transformada em slogans e produtos, algo palatável para organizações e que promove também um esvaziamento das pautas.
A simples presença de mulheres em espaços de poder não significa uma vitória para todas as mulheres. Se as próprias estruturas que promovem a opressão e a exploração sexista continuam operando, mulheres estarem contribuindo com isso não significa um avanço coletivo, mas meramente um ganho individual para elas. Teóricas feministas das Relações Internacionais como Tickner (1992) e Enloe (2014) apontam, por exemplo, o problema de associar os casos de mulheres, como Margaret Thatcher e Condoleeza Rice, ocuparem os cargos que ocuparam como exemplos de uma “conquista feminista”. Por isso, argumenta-se que muito do que é comercializado como feminismo trata mais de uma visão feminista liberal, individualizando ganhos de movimentos que são coletivos.
Julieta Paredes (2014) acena para o contexto em que isso se torna possível especialmente na América Latina no contexto da adesão a políticas neoliberais, de modo que algumas mulheres – geralmente brancas, de classe média e alta – são absorvidas por tais políticas graças à exploração do trabalho de mulheres não-brancas, campesinas e da classe trabalhadora. Tal denúncia não é recente, feministas negras têm chamado atenção para as incongruências dos movimentos feministas durante todo o século XX.
Contudo, o que muitas ativistas e teóricas há muito alertavam fica cada vez mais nítido: a heterogeneidade dos movimentos e das pautas. A própria concepção de um movimento linear dividido em “ondas” prioriza um prisma ocidental do que seria o feminismo (GUZMÁN, 2014), enquanto existe uma diversidade de experiências que se articularam no combate a formas de desigualdade de gênero, violência e opressão além do feminismo liberal ocidental.
Assim, podemos fazer uma reflexão ao observar o dia 8 de março como uma data repleta de complexidades e desafios; enquanto é necessário reafirmar direitos conquistados e constantemente ameaçados pelo crescimento de posicionamentos misóginos e antifeministas, é preciso estar também em constante construção de pautas e políticas que revêem os próprios movimentos, reconhecendo suas falhas e tornando-se mais inclusivo. Por mais que uma visão individualista do feminismo seja a mais comum a ser defendida, que enaltece a ocupação de alguns espaços por algumas mulheres, temos como desafio e objetivo a continuidade da discussão coletiva das formas de opressão, exploração e violência de gênero, racista e capitalista.
Temos como um exemplo notável a conquista do movimento feminista argentino em 2020, que há décadas construía debates e promovia pressão política pela aprovação da Lei de Interrupção Voluntária de Gravidez (Ley Nº 27610), adotando no texto final que a lei se aplica a mulheres e/ou pessoas gestantes, reflexo dos debates sobre a urgência da inclusão de pessoas trans e não-binárias na elaboração de políticas públicas, para citar um caso.
Por fim, podemos concluir que apesar de existir uma sensação de que cada vez mais fala-se sobre feminismos e questões de desigualdade de gênero, não há uma vitória absoluta nisso, visto que com mais difusão do debate ganham força também posicionamentos misóginos e antifeministas, de esvaziamento das pautas e distorções de discursos (hooks, 2008).
Entre slogans, camisetas e enaltecimentos de poucas mulheres ocupando alguns espaços, temos um 8 de março de 2021 preocupante que nos possibilita identificar como as diferentes formas de opressão continuam atingindo mulheres de todo o mundo, umas mais do que outras, e que o caminho é coletivo e não individual. Mais do que nunca o dia 8 de março é preciso ser pensado como um dia de representação das lutas de todas as mulheres, para que possamos construir novos caminhos para a transformação de toda a sociedade.
REFERÊNCIAS
ENLOE, Cynthia. Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley: University of California Press, 2014.
FERREIRA, Lola. SILVA, Vitória R. da. “2020: o ano da pandemia e seu impacto nas mulheres, pessoas negras e LGBT+.” Gênero e Número, 22 de dezembro de 2020. In: http://www.generonumero.media/retrospectiva-2020/.
GUZMÁN, Adriana. “Descolonizar la memoria.” In: PAREDES, Julieta (ed.). El tejido de la rebeldía ¿Qué es el feminismo comunitario? Bases para la despatriarcalización, p. 20-61. La Paz, Bolívia: Comunidad Mujeres Creando Comunidad, 2014.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2008.
LUND, R. G. M NICA, S. M NICA, G. “Collateral issues in times of Covid-19: child abuse, domestic violence and femicide.” Revista Brasileira de Odontologia Legal –RBOL 7, no. 2 (Julho): 54-69, 2020. In: https://www.portalabol.com.br/rbol/index.php/RBOL/article/view/318/249.
OXFAM. “6 razões pelas quais o impacto do coronavírus sobre as mulheres é maior.” OXFAM, 31 de março de 2020. https://www.oxfam.org.br/blog/6-razoes-pelas-quais-o-impacto-do-coronavirus-sobre-as-mulheres-e-maior/.
TICKNER, J. A. 1992. Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security. New York: Columbia University Press.