Maria Eduarda Diniz – Acadêmica do 7° semestre de Relações Internacionais da UNAMA

Quando se pensa no ambiente jurídico, a imagem que se forma é de um ambiente solene, em que a lei deve prevalecer sempre. O mundo jurídico já foi aberto ao público muitas vezes, mas mesmo assim, quando alguém vai à justiça, a ideia de que será inocente até que prove o contrário não é uma regra na opinião pública. Para esta, muitas vezes, o chamamento ao processo legal indica que há algo errado, ou seja, indica que há motivos para se considerar culpado o réu.

Friedrich Kratochwil, importante teórico construtivista, apesar de nem sempre ter se visto assim, explicou em seu livro Rules, Norms and Decisions, que as normas justificam, legitimam e tornam certos atos possíveis, ou seja, os padrões resultantes delas são legitimados numa sociedade pois ela depende de normas e regras.

Nogueira e Messari (2005, p.167), ao falarem sobre o construtivismo de Kratochwil explicam que, dentro do pensamento do autor, os atores tendem sempre a recorrer às normas. Para Kratochwil, as normas representam a principal influência nas ações humanas, mesmo que de forma indeterminada. Nesse sentido, em um mundo socialmente construído, a ação humana é moldada e regida por regras.

Por isso, no pensamento do autor construtivista, para se analisar as ações dos agentes, deve-se pautar não na análise das ações em si, mas na análise das regras e normas que orientaram suas escolhas. Para Kratochwil, os processos de comunicação social e de intersubjetividade são pontos centrais para que se entenda o processo dentro do qual as decisões e as ações dos atores são analisadas.

Nos anos 90, o general estadunidense, hoje reformado, Charles Dunlap cunhou o termo “lawfare” para determinar uma guerra não convencional em que a lei é usada como meio para se alcançar um objetivo militar. O termo se refere à junção da palavra law (lei) e warfare (guerra), que em tradução literal significa guerra jurídica. Nessa primeira perspectiva, o “lawfare” era visto como algo ruim, como o uso da lei para atingir negativamente os “Estados democráticos”. A partir do atentado das Torres Gêmeas, em 2001, os EUA, que acusavam o lawfare como algo negativo, passaram a acrescenta-lo como parte de sua estratégia para a proteção de sua soberania nacional.

Entretanto, antes mesmo das Torres Gêmeas, o lawfare já estava sendo ativado por vários países por conta da dissolução da Iugoslávia, a desmilitarização de várias regiões, o fim das ditaduras na América Latina, entre vários outros eventos que aconteceram a partir dos anos 90, em que os instrumentos jurídicos internacionais passaram a ser usados para manter zonas de influência, ou redefini-las. O lawfare, então, é uma manipulação de instrumentos legais para constranger, restringir, retirar direitos, remover ou simplesmente afastar um “alvo” determinado, impedindo sua permanência ou ascensão ao poder, ou seja, impedindo o devido processo legal, que deveria ser justo e é um direito do cidadão.

O lawfare normalmente conta com algumas prerrogativas, como uma figura jurídica que surge como “herói” da nação, o uso da mídia para tornar o processo legal um espetáculo e ajudar a discriminar ainda mais a imagem de seu alvo, a utilização de vazamentos e bloqueios de privacidade, entre várias outras formas que demonstram a presença do lawfare em certo processo legal. Dentro da América Latina, o lawfare se tornou mais conhecido depois da perseguição de vários ex-presidentes considerados da esquerda, como o ex-presidente Lula, no Brasil.

Para E. Raúl Zaffaroni (2019, p.12), o lawfare na América Latina é utilizado por manchas de riqueza do Sul Global para controlar os excluídos, que são maioria da população, e qualquer governo que não ajude essa massa nesse intento corre o risco do lawfare. Equador; Argentina; Bolívia; Colômbia; Venezuela; Brasil. O fenômeno começou a se espalhar por esses países e ameaçar outros da região. Essas operações tiveram como “fagulha” o Projeto Pontes, em 2009, dos EUA, que ensinava como combater o “terrorismo” e contou com figuras chaves, como Sérgio Moro, para a queda desses políticos, nos moldes da antiga Operação Condor, da época das ditaduras, na Guerra Fria.

O caso do Brasil, o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e a prisão do ex-presidente Lula foram dois dos casos mais severos na região, pois entende-se que esses processos desestabilizaram completamente a estrutura brasileira, abrindo portas para discursos totalitários no governo e na sociedade. A famosa Operação Lava-Jato, que deveria acabar com os casos de corrupção no Brasil, teve grande repercussão no país a partir de 2014, porém, apresenta características próprias do lawfare, como a presença da figura do “juiz herói”, que Sérgio Moro encarnou na época e de vazamentos de informações para a imprensa.

Algo que fez a operação ser mais encarada como prática de lawfare foi que, após a definitiva prisão de Lula, vários aspectos que compunham a Operação Lava Jato, como os grampos, as gravações e os acessos a mensagens privadas, passaram a ser obstaculizadas, tendo agora uma série de restrições. Dessa forma, a Operação Lava Jato praticamente deixou de existir depois da queda de Lula, e aqueles que eram vistos como heróis, como Sérgio Moro, perderam toda a influência que tinham.

Dentro do pensamento de Kratochwil, as normas existem para legitimar ações e é dessa pretensão que o Lawfare se utiliza. Não existe penalidade e nem nada que impeça o lawfare. Isso se dá justamente porque ele se baseia em leis já existentes, se aproveitando de brechas nestas ou na intersubjetividade das doutrinas jurídicas e nas jurisprudências. Ao manipular a lei, o lawfare cria a ideia de que suas ações são legítimas e utiliza as mídias de forma que convença a população a seguir sua linha de pensamento.

O alvo pode ser culpado ou não, mas o que importa para quem se utiliza do lawfare é sempre fazer com que a opinião pública acredite piamente que o “alvo” é culpado de todas as tragédias. Países como a Bolívia conseguiram reverter seus processos de lawfare, mas outros, como o Brasil, ainda o negam. Enquanto o lawfare se esconder sob a cortina das leis, será difícil imaginar um futuro em que essa prática realmente seja impedida, mas a cada novo estudo acerca dele, a cada nova luz que é jogada sobre ele, o lawfare fica com cada vez menos espaço para se esconder. É um processo lento, mas não impossível.

REFERÊNCIAS

KITTRIE, Orde. Lawfare : law as a weapon of war. Oxford University Press, 2016.

ROMANO, Silvana (Compiladora). Lawfare: guerra judicial y neoliberalismo en América Latina. Mármol Izquierdo Editores, 2019, página 12 a 24.

Kanaan, Gabriel Lecznieski. O BRASIL NA MIRA DO TIO SAM: O PROJETO PONTES E A PARTICIPAÇÃO DOS EUA NO GOLPE DE 2016. 2017.

WILLIAMS, Paul. Lawfare: A War Worth Fighting . Case Western Reserve Journal of International Law, 2010.

NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das Relações Internacionais: Correntes e Debates. Elsevier, 2005, página 167 a 169