Maria Carolina Regateiro – Acadêmica do 8° semestre de Relações Internacionais da UNAMA

O processo de colonização ocorrido na América do Sul, por meados do século XV, tratou de hierarquizar, além dos fatores políticos e econômicos, os fatores raça e gênero, de modo que as mulheres indígenas passaram a ser alvo de ações coordenadas que as objetificavam e as viam como corpos a serem explorados, tanto no sentido labora quanto sexual, construindo uma subjetividade que as diferenciavam, por exemplo, das mulheres brancas. Deste modo, as mulheres indígenas passaram por opressões diferenciadas em relação a outros grupos sociais, se tornando assim, juntamente com as mulheres pretas, as principais vítimas do tráfico humano na Amazônia.

As estruturas coloniais, durante esse longo período, eram impostas e mantidas pela intimidação e pelo poderio militar, mas também, eram enraizadas pela construção de novas mentalidades de inferioridade e submissão. A colonialidade, então, pode ser entendida como um mecanismo de dominação, tendo em seu principal objetivo, a subalternização dos colonizados e a perpetuação da hegemonia dos colonizadores (QUIJANO, 2005). 

Desta forma, a colonialidade está na base do poder, do saber, do ser, e posteriormente, do gênero, que se tornou uma grande ferramenta para entender a América Latina como um todo, pois, esse sistema colonial seria evidenciado pela combinação entre raça, gênero, sexualidade e classe, aprofundando-se, inclusive, na inseparabilidade da racialização, com a exploração capitalista.  (LUGONES, 2008). 

O tráfico humano, apesar de se manter sendo um tema atual, na realidade, é uma questão histórica na humanidade. No Brasil, a dinâmica do tráfico, além de estar fortemente relacionada com o período colonial e escravocrata, teve sua intensificação quanto a fragilização da posição e figura de mulheres na Amazônia a partir dos processos de mercantilização da região e da floresta, o que ajudou a reforçar uma cultura pautada na exploração, inclusive sexual.

Com a massiva exploração da borracha, do garimpo, dos projetos de desenvolvimento e das políticas socioeconômicas que sempre foram voltadas para a população masculina, fica evidente, como ressalta Hazeu e Figueiredo (2006), que as mulheres somente eram – e por muitas vezes ainda são – percebidas em “segundo plano”, pois elas estariam ali para ocupar os lugares desejados pelos homens: empregadas domésticas, dançarinas, profissionais do sexo e entre outros.

De acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf), grande parte destas mulheres são de classes populares, habitam em periferias e nos interiores, além de possuírem baixa escolaridade, suas idades variam, predominantemente entre 15 e 27 anos. 

Silva e Hazeu (2012) afirmam que entre os motivos de mulheres se tornarem vítimas do tráfico estão: a fuga da situação de miséria e da violência doméstica e sexual, abusos em ambientes familiares ou de trabalho e até mesmo a rejeição de ser submissa de acordo com o “papel da mulher” e as expectativas que são esperadas de sua figura. Muitas dessas mulheres, também, escolhem a prostituição como alternativa para a autossustentação e a realização pessoal, por vezes vinculada à vida no exterior e suas idealizações.

De acordo com o Relatório da UNODC (2018) sobre dados quanto a América do Sul, de 2014 a 2016, no Brasil, foram identificadas 220 vítimas de tráfico humano para exploração sexual, sendo 110 delas adultas e 110 meninas, o que torna as mulheres 100% das vítimas – identificadas – do tráfico humano com fins de exploração sexual no país nos últimos anos. Tais dados reforçam a necessidade de enxergar a categoria de gênero como parte das análises feitas não somente na Amazônia, mas no mundo.

A falta de perspectiva fora de padrões pré-existentes acaba por ignorar as múltiplas identidades, vontades e resistências das mulheres amazônicas, e as redes de tráfico, se aproveitando disso, ludibriam meninas e mulheres a entrarem na rede do crime. A exploração da mulher, portanto, pode se iniciar de várias formas, que infelizmente seguem sendo naturalizadas em nossa sociedade.

Enquanto as mulheres não gozarem de oportunidades iguais na educação, moradia, alimentação, emprego, enquanto não tiverem alívio do trabalho doméstico não-remunerado, enquanto seu acesso ao poder do Estado e à liberdade não for garantido, vão continuar na lista das vítimas preferenciais da violência e do tráfico (DE JESUS, 2009).

REFERÊNCIAS

DE JESUS, Damásio Evangelista. Causas do Tráfico Internacional de Mulheres e Crianças. Revista Igualdade VII – Estudos. c. 2009. Disponível em: <https://crianca.mppr.mp.br/pagina-589.html#:~:text=Enquanto%20as%20mulheres%20n%C3%A3o%20gozarem,viol%C3%AAncia%20e%20do%20tr%C3%A1fico%20(> Acesso em: 13 set, 2020.

HAZEU, Marcel; FIGUEIREDO, Danielle Lima de. Migração e tráfico de seres humanos para Suriname & Holanda. Belém: Txai/Emaús, 2006.

LUGONES, María. Colonialidade e gênero. Tabula Rasa. Bogotá. Nº 9: 73-101, jul-dez, 2008. 

LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas. Florianópolis. Set-Dez.2014.OLIVEIRA, Márcia Maria. Tráfico Internacional de Mulheres na Amazônia: Desafios e Perspectivas. Fazendo Gênero 9, Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. 2010. Disponível em: <encurtador.com.br/ghW34>

Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf). 2002. Disponível em: <https://www.mprs.mp.br/media/areas/infancia/arquivos/trafico.pdf&gt;. 

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A Colonialidade do saber, eurocentrismo e Ciências sociais. Buenos Aires. CLACSO. (2005). UNODC. Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes. c.2020. Disponível em: <https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html>. Acesso em: 21 de jun. de 2020.

SILVA, Lúcia Isabel da C. HAZEU, Marcel. Resistência e migração: caminhos de construção de identidade por mulheres que viveram situação de tráfico. Psicología para América Latina (2012), 23, 5-27.UNODC. Relatório Global sobre o tráfico de pessoas. Nova Iorque: 2018. Disponível em <https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_TIP/Publicacoes/TiP_PT.pdf> Acesso em: 20 set de 2020.