Prof. Dr. Mário Tito Almeida

Recentemente dois fatos recolocaram o binômio fome-alimento na agenda internacional. No dia nove de outubro o Programa Mundial de Alimentos foi anunciado como o ganhador do Prêmio Nobel da Paz pelo seu destacado trabalho “para impedir o uso da fome como arma de guerras e conflitos”, conforme afirmou o Comitê Nobel Norueguês. Já no dia 16 do mesmo mês, ocorreu o Dia Mundial da Alimentação, promovido pela FAO e destinado a promover debates na comunidade internacional sobre nutrição e alimentação, bem como organizar a luta contra a fome no mundo.

    Ambos os eventos aconteceram em um contexto onde a insegurança alimentar e nutricional volta a aumentar nos países. Na década de 90 do século XX, um bilhão de pessoas passavam fome no mundo. Este número caiu para 720 milhões em meados de 2015. No entanto, o número de famintos em 2019 já chegou a 820 milhões de seres humanos (FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO, 2019), e vem crescendo, considerando o período de pandemia no mundo em 2020.

    Diante desse quadro, é imperioso perguntar quais os motivos que causaram esse aumento de pessoas que sofrem do mal da fome no mundo, considerando que várias são as organizações multilaterais que têm participado do esforço internacional para erradicação da fome no mundo, como indicava o objetivo número um dos Objetivos do Milênio da ONU (ODM), cuja análise crítica pode ser encontrada em CARVALHO & BARCELLOS (2014).

    Uma das formas de responder a este questionamento é analisando a própria dinâmica de governança global no âmbito da alimentação diante do quadro internacional contemporâneo, a partir do que é preconizado e discutido pela teoria neoliberal das Relações Internacionais.

    Com efeito, governança global é a gestão coletiva de problemas transnacionais ou globais, cuja criação ou exacerbação podem ser encontradas no fenômeno da globalização do final do século XX. Fala-se em gestão coletiva por entender que um Estado sozinho não consegue resolver tais questões e que a solução passa pela complexa rede de regras, instituições e processos, bem como pelo envolvimento de todos os que possuem relação com a questão.

    Um dos autores de relações internacionais importantes para a compreensão específica de governança no âmbito global é James Rosenau (1995; 2006; 2008), cuja obra seminal foi escrita em parceria com Ernst-Otto Czempiel (ROSENAU & CZEMPIEL, 1992). Segundo suas palavras “a governança diz respeito a atividades apoiadas por objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam resistências” (ROSENAU, 1992, p. 15).

Discutindo a governança global para o século XXI, Rosenau (1995) afirma que os seus entraves e desafios, suas tensões e contradições, bem como seus paradoxos não demonstram que ela é impossível de existir, mas, muito pelo contrário, a partir deles pode-se discernir padrões de governança que tendem a proliferar e outros que são susceptíveis de atenuar. A tarefa, por isso, não é impossível, mas é um desafio, já que nasce a partir de acordos pontuais entre os países, passa pela construção de regimes internacionais e alcança a institucionalização desta governança que se consolida, em geral, nas Organizações Internacionais.

No campo alimentar, esta governança reúne, entre outros, a organização da ONU para a agricultura e alimentação (FAO, na sigla em inglês), o Programa Mundial de Alimentos (PMA) e o Fundo Internacional para o Desenvolvimento da Agricultura (FIDA). Aqui a questão é mais complexa, pois ao redor dela muitos interesses estão em jogo numa relação de poder tri-setorial que congrega atores estatais (Estados e OIs), atores do mercado (Empresas e corporações transnacionais) e atores da sociedade civil global (ONGs internacionais e outras instituições) em torno da questão alimentação no mundo vem configurando o panorama de disputas e interesses neste campo. 

Atores internacionais não-governamentais da Sociedade Civil Global criticam esta articulação em torno da segurança alimentar por não enfocar nem assegurar aos países o poder de decisão no que tange a produção e o consumo de alimentos suficientes a sua população, já que, de acordo com eles, este poder de decisão deve definir as políticas e estratégias para uma produção sustentável com comercialização e distribuição de alimentos moldando às variações culturais da população. Ao mesmo tempo, o avanço do interesse das grandes corporações transnacionais por países que ofereçam condições de solo fértil vem se concretizando de várias formas, pondo em risco a frágil biodiversidade de várias regiões do mundo (como a Amazônia) e ensejando formas concretas de dispositivos de resistência e afirmações dos povos atingidos.

E aqui pode ser encontrado um dos motivos para que o problema da fome não seja resolvido, não obstante os esforços internacionais: a governança global da segurança alimentar não resiste aos interesses das grandes corporações transnacionais alimentares que dominam o mercado de alimentos. Além disso, é fraca diante dos interesses dos Estados nacionais que, em tempos de crise econômico-financeira como estes, buscam práticas protecionistas e deixam de investir em multilateralismo e em cooperação internacional que possa favorecer os países mais empobrecidos que não possuem condições nem de produzir alimentos e nem de adquirir no mercado internacional.

A estes, o alimento não é mais um direito porque se tornou mercadoria impossível de ser comprada… 

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Paulo G. M. de, BARCELLOS, Frederico C. Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – ODM: Uma avaliação crítica. Revista Sustentabilidade em Debate – Brasília, v. 5, n. 3, p. 222-244, set/dez 2014.

FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO. The State of Food Security and Nutrition in the World 2019. Safeguarding against economic slowdowns and downturns. Rome: FAO, 2019.

ROSENAU, J. N. e CZEMPIEL, E-O (orgs.). Governança sem Governo: Ordem e Transformação na Política Mundial. Brasília, Editora da UnB, 2000. 

ROSENAU, James. Governance in the Twenty-first Century. Global Governance, Vol. 1, No. 1 (Winter 1995), pp. 13-43 Disponível em http://www.jstor.org/stable/27800099. Acesso em: 22 de janeiro de 2017.