Estes dados mostram que a fome ainda é um problema no Brasil | Super

Prof. Dr. Mário Tito Almeida – Universidade da Amazônia (UNAMA)

Não obstante as mais variadas iniciativas internacionais, a fome no mundo continua sendo o flagelo mais doloroso para mais de um bilhão de pessoas no mundo. Estudos indicam que o problema não se encontra na produção de alimentos, pois existe comida para todos no mundo (ZIEGLER, 2013). O gargalo se dá na fase de distribuição e de acesso a eles, e isso tem muito a ver com o modelo econômico hegemônico no mundo, que privilegia as corporações transnacionais alimentares, em detrimento da produção proveniente de trabalhadores rurais da agricultura familiar (DOWBOR, 2017; DESMARAIS, 2015). Em uma expressão: alimento virou mercadoria e deixou de ser direito.

Trazendo a questão para o âmbito regional, percebe-se que há duas dinâmicas relacionadas ao tema que são antagônicas entre si. De um lado, um avanço gigante de grandes corporações transnacionais voltadas para a produção de alimentos voltados para exportação, com o incremento avassalador do uso da terra, de máquinas e de capital no modelo de agronegócio e os consequentes impactos ambientais não menos avassaladores. De outro, movimentos sociais ligados à agricultura familiar que postulam, à luz do que vem acontecendo no mundo todo, um novo modelo de utilização dos recursos destinados à produção de alimentos, baseado na agroecologia e na soberania alimentar .

A fome na Amazônia é invisibilizada. Por não ser vista nem estudada com profundidade, acaba por ter suas características mascaradas. Além disso, as corporações transnacionais que estão presentes na região estão inseridas na dinâmica da produção de soja voltada para abastecer o comércio internacional e não efetivamente na produção e distribuição de alimentos.

Isto não significa que não são causadoras da fome na região, mas que indiretamente influenciam, pois, além de ocupar espaços que poderiam ser destinados à produção de alimentos, interferem fortemente na dinâmica existencial (e, portanto, alimentar) das populações atingidas pelas plantas produtivas e logísticas de seus produtos. 

É por estas características que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) estabelece a promoção da soberania alimentar na Amazônia focando principalmente no enfrentamento a estas corporações e nos problemas ecológico-fundiários correlatos. Com efeito, a luta pela reforma agrária está imbricada na luta pela agricultura do tipo agroecológica e pelas mobilizações contra os latifúndios históricos e os gerados por esta “nova fase” da exploração da região.  

Se no mundo e no Brasil a soberania alimentar organiza-se, ainda, de maneira incipiente, na Amazônia ainda carece de maior articulação, apesar de avanços significativos reportados em ALMEIDA (2019). 

Em primeiro lugar, nota-se que se faz necessário estimular permanentemente a organização das famílias, numa perspectiva de fortalecer o capital social destas comunidades, como fator-chave para o desenvolvimento rural sustentável, por meio do associativismo e do cooperativismo para a discussão de soluções e estratégias comuns. 

Outra questão estratégica para o desenvolvimento de tais comunidades ribeirinhas é a necessidade de articulação sistêmica das políticas públicas, nas variadas esferas de governo, visando superar o paradigma da competição entre os entes federados, induzindo uma nova dinâmica baseada na ação cooperada e na participação social, de forma a permitir a maximização dos resultados e o alcance efetivo dos objetivos de melhoria da qualidade de vida da população.  

Um tema desafiador consiste na necessidade de induzir a adoção de uma nova matriz tecnológica de produção, com enfoque na transição agroecológica, na relação harmônica e construtivista entre as tradições e costumes endógenos com o saber científico, por meio da estruturação de um programa duradouro e pedagógico de assessoria técnica, social e ambiental, que seja capaz de fortalecer os arranjos e cadeias produtivas do agroextrativismo e da biodiversidade, numa perspectiva contínua de organização econômica das famílias assentadas, como condição básica para sua emancipação enquanto efetivos cidadãos e cidadãs do meio rural.  

Será necessário estimular formas organizativas que tenham como enfoque a economia solidária, o cooperativismo e a autogestão. Mas, fundamentalmente, é imprescindível que os recursos e investimentos públicos da reforma agrária sejam aplicados a partir de uma racionalidade econômica, pois constituem ativos atribuídos a populações pobres para que os transformem em fontes de reorganização de suas vidas e melhorem o padrão de sua inserção social.  

Em outras palavras, as famílias precisam adquirir a consciência de que os recursos escassamente obtidos, além da exigência republicana de serem eficientemente aplicados, devem engendrar um novo padrão de desenvolvimento local, cuja marca definitiva seja a sustentabilidade. 

“Onde há poder, há resistência, (não existindo) propriamente o lugar da resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social”, afirma FOUCAULT (1979, p. 18). Dessa forma, diante do poder imenso das corporações transnacionais alimentares na Amazônia, uma forma eficaz de resistir e defender os saberes tradicionais, bem como os modos de comer da região estão seguramente sustentados na soberania alimentar que se constitui a partir da agroecologia familiar, da relação de cooperativismo e no fomento de dinâmicas que superem a lógica do capital.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Mário T. B. A dinâmica eco-geopolítica da fome e as relações de poder na governança global da segurança alimentar. 2019. 305 p. Tese (Doutorado em Relações Internacionais) Universidade de  Brasília, Brasília – DF.

DESMARAIS, Annette A. The gift of food sovereignty. Canadian Food Studies. Vol. 2, No. 2, September 2015. p. 154–163.

DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

ZIEGLER, Jean. Destruição em massa. Geopolítica da fome. São Paulo: Cortez, 2013.