A saída para o mundo pós-pandemia: mais cosmopolitismo
Século 21. Ano de 2020: O vírus da Covid-19 atingiu o mundo de forma repentina e inesperada, e não se limitou a fronteiras. É fato que, em alguns países, pôde ser mais contido graças a ações de líderes políticos e, acima de tudo, da sociedade civil organizada. Pessoas e grupos que seguiram corretamente as orientações dadas pela Organização Mundial da Saúde, que estiveram e estão na linha de frente do combate à esta pandemia e conscientes de que vivem em uma sociedade muito maior do que a que as circunda: uma sociedade cosmopolita.
Apesar de derivar de uma mesma palavra e mesmo idioma, a concepção sobre o cosmopolitismo possui variações interpretativas e diversos autores que discorrem sobre tal ideia. O termo original que conceitua a ideia clássica de cidadania advém da Grécia Antiga, na qual eram cidadãos todos aqueles que possuíam participação ativa na vida política da cidade. Do grego “κόσμος” (kósmos) que significa mundo e “πόλις” (pólis), cidade, surgiu o termo “κοσμοπολίτης” (kosmopolítes) que basicamente significa cosmopolita ou cidadão do mundo.
Uma compreensão mais moderna da palavra, de senso comum e dissociada do sentido político, é a de pessoas que viajam bastante e se adaptam facilmente a diferentes culturas e modos de vida, ou alguém que sofreu a influência de uma cultura que não é a sua de origem. Já para a biologia, cosmopolita é um ser vivo que possui ampla adaptação a fatores ambientais.
Para Immanuel Kant, o cosmopolitismo condiz com a ideia grega, porém não no sentido estrito à atividade política, mas em uma concepção na qual os cidadãos fossem pertencentes a um mundo sem fronteiras a partir do qual se poderia alcançar uma cidadania mundial por meio da qual se chegaria à paz – como propõe em sua obra “À Paz Perpétua”, de 1795. Nesta obra, Kant vislumbra uma sociedade baseada em princípios universais de igualdade, direito à proteção e hospitalidade. Para ele, o cosmopolitismo seria focado nesta garantia de direitos globais, para além das fronteiras.
Já o teórico crítico Andrew Linklater, diretamente influenciado por Kant, assume a perspectiva cosmopolita kantiana quando associa isso à sua ideia de cidadania. Linklater propõe uma comunidade política com éticas universais que conformem uma unidade, mas que respeitem o todo, ou seja, uma universalidade que não desvalorize as particularidades culturais. Visava ainda, que esse projeto possibilitaria uma redução das desigualdades, justamente por estimular o respeito ao diferente, e por envolver a necessidade de compaixão inter-humana, promovendo uma responsabilidade moral de todos para com todos.
É possível perceber como esses conceitos sobre cosmopolitismo convergem para um entendimento de cidadãos do mundo, com contato intercultural e facilidade de adaptação, o que é uma característica da qual, basicamente quase todos as pessoas dispõem. No entanto, a pandemia do novo coronavírus trouxe a percepção da insuficiência de um sentido de comunidade nas pessoas: o sentimento de responsabilidade moral coletiva e individual de que fala Linklater.
A pandemia já matou, até julho de 2020, mais de meio milhão de pessoas no mundo. Dos mais de 230 mil novos casos do final de semana (11 e 12 de julho), 50% pertence ao Brasil e Estados Unidos. Dois grandes exemplos de países que têm expressado bastante resistência em seguir os protocolos de prevenção orientados pela OMS e que, consequentemente, possuem altíssimos casos de infectados e vítimas fatais. Tudo isso porque preferem adotar medidas próprias, muitas vezes não pautadas cientificamente, e que não levam em consideração o bem estar social, mas o que for melhor para seus setores econômico e político.
A Organização Mundial da Saúde é uma agência internacional das Nações Unidas e atua por meio de princípios universais que buscam informar e atender as necessidades salutares de todos, de forma a tentar garantir os direitos de todas as pessoas à saúde. No entanto, tanto esta como várias outras agências só conseguem realizar sua missão com a colaboração dos Estados e da comunidade internacional, ou seja, das pessoas.
Sem dúvidas, se as orientações da OMS houvessem sido seguidas desde o princípio, com regularidade, seriedade e responsabilidade, possivelmente estaríamos agora em uma situação muito mais estável, segura e prospectivamente positiva. É muito provável, também, que menos pessoas tivessem morrido, que menos trabalhadores tivessem perdido seus empregos e houvesse menos grupos populacionais passando fome. Porém, para que se possa conter tal realidade, a participação e a consciência das pessoas é imprescindível.
Portanto, quanto antes valorizarmos as instituições que objetivam o bem estar global e quanto antes compreendermos que as pessoas não são meros cidadãos, mas seres humanos pertencentes a uma grande comunidade universal – independentemente de um pertencimento a uma nacionalidade ou grupo cultural -, mais cedo conseguiremos alcançar um comportamento global de solidariedade e de responsabilidade moral de todos para com todos e, assim, formar uma verdadeira sociedade cosmopolita, interessada tão somente no bem estar social e na garantia de direitos.
Referências:
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KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1989.
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SALATINI, Rafael. “Debate contemporâneo sobre o cosmopolitismo: Novas perspectivas para a compreensão da cooperação internacional”. Disponível em:
___________. “Kant e o cosmopolitismo”, in S.L.C. Aguillar & H.M. Albres (orgs.), Relações internacionais – Pesquisa, práticas e perspectivas, Marília, SP, Oficina Universitária, [São Paulo], Cultura Acadêmica, 2012, pp. 229-243.
SARFATI, Gilberto. Teorias das Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Saraiva, 2005.
A emergência de uma cidadania cosmopolita diante do contexto globalizado: o ativismo na rede e as novas formas de pensar e fazer política.
Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-121/a-emergencia-de-uma-cidadania-cosmopolita-diante-do-contexto-globalizado-o-ativismo-na-rede-e-as-novas-formas-de-pensar-e-fazer-politica/#_ftn3. Acesso em 14.07.20
Crise da Covid-19 pode ficar ‘pior e pior e pior’ se países não aderirem às precauções básicas, alerta OMS. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/07/13/crise-da-covid-19-pode-ficar-pior-e-pior-e-pior-se-paises-nao-aderirem-as-precaucoes-basicas-alerta-oms.ghtml. Acesso em 14.07.20
Coronavírus: por que a OMS diz que o pior da pandemia de covid-19 ainda está por vir. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/bbc/2020/06/30/coronavirus-por-que-a-oms-diz-que-o-pior-da-pandemia-de-covid-19.htm. Acesso em 14.07.20